O Estado de S. Paulo

O preço de carros usados e a agenda de Biden

- •✽ PAUL KRUGMAN / TRADUÇÃO PRELORENTZ­OU DE RENATO

A história nos diz que é muito ruim quando os formulador­es de políticas entram em pânico diante de picos de inflação

Então, será que o presidente Joe Biden deveria descartar sua agenda econômica só porque os americanos estão correndo para comprar carros usados?

OK, estou sendo um pouco sarcástico aqui, mas só um pouco. Porque é basicament­e isso que estão dizendo os economista­s que tentam tirar grandes conclusões com base no relatório de inflação da Secretaria de Estatístic­as do Trabalho divulgado na quarta-feira.

É verdade que, embora quase todos esperassem um aumento nos preços ao consumidor, o aumento real foi maior do que o esperado. A taxa de inflação dos últimos 12 meses ficou acima de 4%, superando seu pico recente em 2011.

Não é bobagem perguntar se uma inflação inesperada­mente alta significa que a economia tem menos espaço para crescer do que o governo Biden e o Federal Reserve vêm supondo; isso pode ser verdade e, se for, os planos de gastos de Biden talvez sejam excessivos e o Fed tenha de pensar num aumento das taxas de juros, mais cedo ou mais tarde.

Mas nem os detalhes desse relatório nem a história recente sustentam essas preocupaçõ­es; eles sugerem, ao contrário, que os formulador­es de políticas devem manter a calma. O cenário não se parece em nada com a estagflaçã­o dos anos 1970; mais parece um pico temporário, refletindo interrupçõ­es transitóri­as desse momento em que a economia luta para se recuperar dos transtorno­s pandêmicos. E a história nos diz que é muito ruim quando os formulador­es de políticas entram em pânico diante dos picos.

Para entender por quê, vamos rever o que aconteceu em 2011, a última vez que testemunha­mos esse tipo de pico de inflação.

Houve um aumento nos preços ao consumidor no fim de 2010 e em 2011, impulsiona­do principalm­ente pelo aumento dos preços do petróleo e de outras matérias-primas à medida que o mundo se recuperava da crise financeira de 2008. A inflação dos preços ao consumidor atingiu 3,8%, um pouco abaixo da leitura mais recente.

E os falcões da inflação enlouquece­ram. O deputado Paul Ryan fritou Ben Bernanke, o presidente do Fed, por causa de suas políticas de dinheiro fácil, entoando: “Não há nada mais insidioso que um país possa fazer a seus cidadãos do que depreciar sua moeda”.

Mas Bernanke não se deixou abalar. O Fed manteve o foco no “núcleo” da inflação, uma medida que exclui os preços voláteis dos alimentos e da energia e que (com razão) constitui uma medida melhor da inflação subjacente do que o número principal. E a cabeça fria do Fed provou seu valor: a inflação diminuiu rapidament­e e o dólar não se desvaloriz­ou.

Tensão. Os formulador­es de políticas de outros lugares não foram assim tão tranquilos. A exemplo dos Estados Unidos, a zona do euro registrou alta nos principais preços ao consumidor, ainda que não no núcleo da inflação. Mas o Banco Central Europeu entrou em pânico: aumentou as taxas de juros apesar do desemprego muito elevado e, ao fazê-lo, agravou a crescente crise da dívida do continente.

As lições de 2011 são duas. Em primeiro lugar, você não deve ter uma reação precipitad­a às flutuações de curto prazo na inflação. Em segundo lugar, quando você vir uma alta nos preços, observe os detalhes: parece um aumento na inflação subjacente ou um pico causado por fatores temporário­s?

O que nos leva ao aumento de preços do mês passado. Será que é algo com que precisamos nos preocupar? Não, não é.

É verdade que focar na definição usual do núcleo da inflação, excluindo alimentos e energia, não muda muito a história. Nos últimos 12 meses, o núcleo da inflação foi de 3%, não muito longe do número principal, e apenas em abril o núcleo da inflação foi ligeiramen­te superior à inflação geral.

Mas vários economista­s, inclusive eu, há algum tempo vêm argumentan­do que as mudanças de preços ao longo dos próximos meses provavelme­nte serão infladas por fatores temporário­s que as medidas convencion­ais do núcleo da inflação não controlarã­o. Um mês atrás, eu avisei: “teremos uma recuperaçã­o estranha”, com um “conjunto incomum de gargalos” causando “uma série de picos de preços fora dos alimentos e da energia”. Fatores peculiares. Com certeza, os números dos preços de abril foram impulsiona­dos em grande medida por fatores peculiares obviamente relacionad­os à reativação da economia. Quando as pessoas falam sobre a inflação subjacente, raramente pensam no preço dos carros usados.

Ainda assim, o aumento mensal de 10% nos preços dos carros usados – em parte porque as pessoas estão prontas para viajar novamente, em parte porque a escassez de chips de computador está prejudican­do a produção de carros novos – foi responsáve­l por um terço da inflação de abril. Também houve um aumento de 7,6% no preço da “hospedagem fora de casa”, pois os americanos estão voltando a frequentar os lugares agora que a pandemia está diminuindo.

E depois houve os “efeitos de base”: um ano atrás, muitos preços estavam deprimidos porque grande parte do país estava em lockdown, de modo que a simples volta ao normal iria disparar um aumento temporário da inflação. As estimativa­s da Casa Branca que corrigem esses efeitos mostram uma inflação considerav­elmente mais moderada.

Esses argumentos para descontar os números da inflação de curto prazo não são desculpas que chegam depois que as coisas já acontecera­m. Escrevi sobre gargalos e falhas há um mês; economista­s da Casa Branca alertaram sobre os enganosos efeitos de base na mesma época. O que estamos vendo é o que esperávamo­s ver, só com um pouco mais de força.

Nada disso significa necessaria­mente que tudo vai bem com o programa econômico de Biden. Talvez seja de fato excessivam­ente ambicioso. Mas os números mais recentes, seja sobre inflação ou sobre empregos, não nos dizem absolutame­nte nada sobre a chance de isso ser verdade.

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DOUG MILLS/THE NEW YORK TIMES Cenário. Programa de Biden pode ser ambicioso, mas é cedo para dizer
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