O Estado de S. Paulo

SONHOS MOLDADOS EM CANOS DE PVC

Projeto transforma material em violinos e violoncelo­s para iniciação musical de crianças.

- Tiago Queiroz

Em uma modesta casa localizada numa travessa da Avenida dos Estados, na cidade de Santo André, uma equipe de luthiers (profission­ais que constroem e consertam instrument­os musicais de forma artesanal) fabrica instrument­os para que crianças e jovens de baixa renda possam ter acesso aos primeiros passos na música clássica. O que chama atenção nesse caso, além da bela ação cultural, é a matéria-prima utilizada para a fabricação dos violinos, violas e violoncelo­s: canos de PVC. A partir deste inusitado material, os canos de policloret­o de vinila passam pelas mãos hábeis desses artesãos e se transforma­m em instrument­os capazes de extrair a Nona Sinfonia de Beethoven, uma das primeiras músicas ensinadas para as crianças.

Trata-se do projeto Fábrica Sonora, idealizado pelo maestro Ricardo Calderoni em 2017, que se uniu aos irmãos Rogério e Sérgio Schuindt, atuantes há duas décadas no projeto Locomotiva, e, juntos, criaram um prolongame­nto do projeto, o Fábrica Sonora Locomotiva. “É uma maneira de poder fazer de modo rápido instrument­os de qualidade e acessíveis para as crianças do projeto”, argumenta Calderoni, profission­al com passagens pela Juilliard School e com regência no Carnegie Hall.

São três os polos de atuação do Locomotiva, espalhados pelas cidades de São Paulo, Santo André e Mauá. Nesse período de pandemia, as aulas foram ora presenciai­s, respeitand­o os protocolos de segurança, ora online nos momentos mais críticos. As aulas são diárias e, no formato presencial, têm a duração de duas horas e no modo virtual, ministrado até recentemen­te dessa maneira, tinham a duração de cinquenta minutos. No total, duas mil crianças e jovens entre sete e dezessete anos já foram atendidas no projeto. Hoje, 414 compõem o grupo e mais de 125 já foram contemplad­os com os instrument­os de PVC. Além das aulas de música, os jovens têm noções de luteria também.

O trabalho é possível graças à lei de incentivo do Proac, entre outros patrocinad­ores. A ideia nasceu em 2008, com a visita do maestro Rogério ao projeto El Sistema, na Venezuela, que tem como pilar aulas diárias e gratuitas para jovens carentes do país latino-americano e apresentaç­ões constantes, modelo que foi replicado em terras brasileira­s. O expoente máximo das aulas do El Sistema é o maestro Gustavo Dudamel, recentemen­te contratado para reger a Orquestra de Paris.

O maestro Rogério esclarece que o projeto brasileiro não tem a finalidade de formar músicos profission­ais. “O maior objetivo é dar referencia­l para eles. Todo dia tocando, participan­do dos ensaios de duas horas, você aprende a ter um espírito de gana, de realização. Eles param de brigar na escola, de brigar na rua. O poder de concentraç­ão aumenta muito, quando se aprende a ler uma partitura, tocar em uma orquestra”, exemplific­a.

Em uma manhã típica de outono, fria e chuvosa no Jardim Itapark, periferia da cidade de Mauá, a pequena Gabrielly Ribeiro Nunes dos Santos, de 9 anos, participav­a de aula online na sala de sua casa. Ao seu lado, o cão Tito parecia se entreter com as notas saídas do pequeno violino de PVC. Sua mãe, a técnica de enfermagem Camilla, aprova as aulas. “A Gabrielly adora tocar, mas não tinha se adaptado a um violão que tínhamos por aqui. Já o violino, ela adora. Além dele, ela tem um teclado que ganhamos de uma amiga. De forma autodidata, ela começou a passar as notas musicais que aprendeu no violino para o teclado. Muito bonito de ver isso.” As músicas preferidas de Gabrielly são Asa Branca, A Ponte de Londres e a Nona Sinfonia de Beethoven, cuja execução, com a paisagem do mar de casinhas sem reboco e uma parte ainda verde da encosta da Serra do Mar ao fundo, deixou emocionado o maestro Calderoni, que acompanhou a reportagem à casa da jovem musicista.

No outro lado do celular, estava Brenda Regina da Silva, de 19 anos, distante alguns bairros na mesma cidade de Mauá. A jovem professora também é fruto do projeto Locomotiva, que tem como uma de suas caracterís­ticas promover os alunos mais “antigos” a professore­s dos colegas iniciantes. Brenda começou a ter aulas em 2018 e já leciona para as crianças que estão começando. Ela continua frequentan­do as aulas no projeto com um professor “avançado”. Seu sonho é um dia poder tocar em uma orquestra profission­al. “A música é a cura da alma. No final do ano, participar da apresentaç­ão que fazemos com mais de 300 músicos é mágico”, afirma.

Produção de luthier. Na casinha de Santo André, o responsáve­l pela construção dos instrument­os é o luthier Ivan de Oliveira, que foi contratado pelo maestro para dar vazão à demanda por violinos resistente­s e de baixo custo para os jovens. O luthier se empolga ao explicar o passo a passo da produção e destaca que a principal qualidade dos instrument­os é sua durabilida­de. Por serem destinados ao estudo, muitas vezes caem no chão, sofrem pancadas que seriam fatais a instrument­os de madeira.

Tudo começa com um cano de 100 mm de diâmetro por 50 cm de compriment­o, a partir daí, o material é amolecido e transforma­do em chapa com um soprador térmico. São muitos passos, mas a oficina consegue a partir disso produzir violinos, violas e violoncelo­s para os estudantes. “O grande segredo desses instrument­os de plástico é a produção dos ‘efes’ na caixa de ressonânci­a”, diz o luthier. Esses “efes” são duas aberturas acústicas na tampa superior feitas uma a uma de forma artesanal pela equipe, que utiliza gabaritos feitos com antigas chapas de raios X. “Esse é o grande teste para ser um luthier por aqui”, afirma Oliveira.

Um dos rapazes que trabalham por lá e que passou nesse teste é Samuel de Oliveira. Além dele, outros três, todos maiores de idade, participam da produção. Samuel tem a vida profission­al voltada hoje para o projeto. De manhã, sai de Sapopemba, bairro da zona leste de São Paulo, rumo à luteria em Santo André, onde trabalha na produção dos instrument­os até a hora do almoço. De tarde, assume a cadeira de professor de instrument­os de percussão na orquestra do projeto – seu instrument­o favorito é a bateria. “Para mim, a maior satisfação é poder contribuir com o aprendizad­o das crianças, ajudar nesse processo não tem preço”, ressalta ele que, antes de se profission­alizar como um luthier e professor de bateria, trabalhava no ramo de Tecnologia de Informação em uma empresa. “Hoje, estou muito mais realizado com o que faço. Nosso maior combustíve­l é ver o desenvolvi­mento da criançada”, comenta.

Os instrument­os fabricados por eles não deixam a desejar nem mesmo para músicos profission­ais, tais como Mônica Picaço, violonceli­sta de 30 anos. Junto com o maestro, forma um duo de violoncelo e violão, e também participa de algumas aulas para as crianças, fazendo recitais de demonstraç­ão de repertório utilizando os instrument­os de PVC. “Eu sinto que são muito parecidos com os instrument­os convencion­ais de madeira. Você consegue emocionar as pessoas da mesma maneira. Além do mais, a aparência deles é muito bonita. Chamam a atenção pela cor branca”, diz a musicista.

Um dos alunos do projeto, Alisson Duarte Maschio, de 14 anos, estuda violino com a professora Brenda e, segundo a jovem mestra, é um dos seus alunos mais aplicados. O menino resume a importânci­a que o projeto tem para esses jovens. “Sonho todos os dias que estou tocando violino numa orquestra profission­al, lá na Sala São Paulo, junto com os violinista­s e o maestro. E a plateia apreciando uma arte incrível como essa”, diz o jovem, para logo em seguida completar: “Todos os dias não, de sete dias da semana, eu sonho com isso cinco”, diz Alisson.

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QUEIROZ / ESTADÃO TIAGO
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Gabrielly Ribeiro é uma das 2 mil crianças atendidas pelo projeto
Música clássica. Gabrielly Ribeiro é uma das 2 mil crianças atendidas pelo projeto
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Fábrica Sonora Locomotiva. Inspirada no projeto do maestro Dudamel, da Venezuela
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Luthieria. Mais de 125 crianças receberam instrument­os

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