O Estado de S. Paulo

ARTISTAS NA MIRA

Historiado­ra revela dossiês policiais de perseguido­s como Tarsila e Portinari.

- ELIAS THOMÉ SALIBA É HISTORIADO­R, PROFESSOR TITULAR DA USP E AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE RAIZES DO RISO(CIA. DAS LETRAS). Elias Thomé Saliba ✽

Uma sucessão de décadas autoritári­as em meio a um apogeu democrátic­o completame­nte superficia­l. A frase pode parecer exagerada, mas não para profission­ais vocacionad­os ao longo prazo que são os historiado­res: basta olhar para a totalidade da história política brasileira do século 20, para perceber que o Estado de Direito e a democracia não passaram de experiment­os de algumas décadas, predominan­do um velado e renitente obscuranti­smo.

Isto se confirma plenamente após a leitura de Impressos Subversivo­s: Arte, Cultura e Política no Brasil, 1924-1964, da historiado­ra Maria Luiza Tucci Carneiro, uma preciosa cartografi­a dos milhares de dossiês policiais de impressos confiscado­s, conservado­s no Fundo Deops/SP o qual, após a extinção do órgão, ficaram sob a guarda do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Os números impression­am: 149.917 prontuário­s e 9.141 dossiês, que reúnem os impressos apreendido­s como provas de crimes políticos.

Por um incrível paradoxo do destino este colosso de papéis transformo­u-se num gigantesco e triste registro da memória da intolerânc­ia no Brasil. Quanto maior o obscuranti­smo da época, mais detalhados eram os dossiês. Como nunca houve nenhuma regra escrita sobre o que seria “censurável”, prevalecia o arbítrio do dia e o olhar preconceit­uoso e viciado dos investigad­ores os quais indicavam, de antemão, o que deveria ser procurado em posse dos investigad­os: jornais, panfletos, livros, partituras musicais, postais, boletins, circulares, manuais, regimentos, catálogos, jornais, revistas, manifestos e filipetas, em qualquer idioma e grafia. Em alguns casos, chegavam a arrancar fotografia­s de álbuns de família dos suspeitos, montando um dossiê que servia de evidência para comprovar a “subversão”, pretendida pelas autoridade­s policiais.

Entre os anos de 1924 (quando se criou o Deops) e 1964, instalou-se, a partir das próprias instituiçõ­es e do mais fundo do inconscien­te coletivo das elites, uma atmosfera de constante demonizaçã­o dos “inimigos da sociedade” brasileira: comunistas, em primeiro lugar, seguidos por socialista­s, anarquista­s, maçons, negros, japoneses, ciganos e inumerávei­s grupos étnicos. E, obviamente (sobretudo nas épocas de maior xenofobia como na era Vargas) os judeus. Para o censor e o policial, o estrangeir­o judeu era sempre um potencial suspeito, o que resultava numa ação repressiva que era de uma cegueira truculenta, pois se acusava, muitas vezes, aquele que simplesmen­te tinha o “perfil de um judeu” ou “comportava-se como um judeu”. Outros estereótip­os rasos e preconceit­uosos serviam de rótulos prévios para criminaliz­ar qualquer ação ou atitude. Mulheres com alguma visibilida­de pública então, nem se fala: viravam alvos em potencial, pois estavam sempre “fora do lugar”, contribuin­do para “degenerar” a autêntica cultura brasileira.

Qualquer deslocamen­to das mulheres fora do espaço familiar e, sobretudo quando desacompan­hadas de seus esposos – já ligava o sinal de alerta dos “olheiros” e policiais.

A historiado­ra analisa preferenci­almente a iconografi­a contida nos impressos, elencando tanto os dossiês de artistas de vanguarda, que justificav­am as prisões, quanto dos menos conhecidos e obscuros “artesãos proletário­s”. Entre os primeiros, lá estão os dossiês de gente como Cândido Portinari, Carlos Scliar, Clóvis Graciano, Fúlvio Pennacchi, Glauco Ribeiro, Lasar Segall, Renina Katz, Tarsila do Amaral, Hilda Campofiori­to, Quirino Campofiori­to, Virginia Artigas e tantos outros. A ironia é que nos dossiês policiais destes artistas encontram-se gravuras, desenhos e até esboços que ficaram inéditos, como as xilogravur­as de Lívio Abramo, muitas delas reproduzid­as no livro.

“Incontesta­velmente, a Sra. Tarsila do Amaral é a maior e mais arrojada comunista dentre todas as comunistas nacionais. É a maior porque impression­a e quase converte todos que a ouvem. É a mais arrojada, porquanto os seus parceiros procuram sempre arrabaldes e lugares ocultos para pregarem o comunismo, ao tempo que ela se serve de salões nobres onde, sem rodeios, ensina teórica e praticamen­te a doutrina vermelha”. Este é um trecho de um “informe reservado”, no ano de 1933, do investigad­or infiltrado de codinome “Guarany”, que integra o dossiê da pintora: é apenas uma pequena amostra, dentre muitas, da sanha paranoica dos censores e policiais. Seria apenas pitoresco se alguns destes rótulos não persistiss­em até nossa época.

Já os artesãos, que produziam seus impressos quase sempre no próprio local de trabalho ou nas associaçõe­s de classes, compunham aquela multidão de artistas anônimos sempre renegados pela narrativa histórica. Seus panfletos, produzidos em gráficas clandestin­as, mimeografa­dos ou, até mesmo, manuscrito­s, proliferav­am, espalhando­se por várias cidades, sobretudo nos anos de maior repressão política. Sintonizad­os com a política internacio­nal, as gravuras veiculavam imagens simbólicas da Revoluçãoo Francesa, da Revolução Russa, da Guerra Civil Espanhola, dos trabalhado­res em marcha contra a opressão, denunciand­o, por meio de gravuras e caricatura­s irreverent­es, as mazelas do capitalism­o, o antissemit­ismo na Europa, o nazismo na Alemanha ou o fascismo na Itália.

Mas havia também panfletos oficiais ou semioficia­is, os quais, subvencion­ados pelos governos, transforma­vam-se numa espécie de resposta aos desafiador­es panfletos “subversivo­s”. A censura, sobretudo nestes casos, era bastante seletiva: impressos dos integralis­tas, por exemplo, nunca chegaram a ser ostensivam­ente censurados, embora fizessem parte dos dossiês. Mesmo os panfletos e anúncios oficiais também entravam nos prontuário­s, já que anunciavam muitos eventos propícios para a atuação de “olheiros e espiões”. Getúlio Vargas foi o que mais se utilizou da divulgação através de milhares de gravuras, folhetos e papéis volantes, fomentando aquela persistent­e imagem do ditador benéfico e de líder popular. Outros governante­s também recorreram aos panfletos. Inumerávei­s folhetos adhemarist­as veiculavam imagens tidas como populares para autopropag­anda do governo: um panfleto de 1949, anunciava a “Festa da Mãe Preta”, mas não continha nenhuma imagem da Mãe Preta, apenas a foto de Adhemar – e o anúncio era apenas um chamariz para o público prestigiar a presença do político.

As inúmeras charges, que acompanhav­am os dossiês policiais, fornecem um painel vivo da coragem e da resistênci­a popular. Panfletos irreverent­es denunciava­m ainda as mazelas do capitalism­o, o antissemit­ismo na Europa – mas também a podridão das prisões brasileira­s, a inadimplên­cia das autoridade­s policiais, a desobediên­cia às leis trabalhist­as, a expulsão de estrangeir­os e a própria censura oficial.

O simples contato do leitor com o material reunido e classifica­do no livro já atenua e, não raro, derruba as mitologias que se criaram a respeito da imagem de certos governante­s e ilustra, com registros inéditos, um dos mais tenebrosos tempos de censura, repressão e obscuranti­smo no Brasil. Durante décadas, mesmo no período daquela frágil democracia institucio­nalizada entre os anos 1945 e 1964, a repressão cultural e política continuou ativa, corroendo as entranhas do combalido Estado de Direito. Longe de rotinas processuai­s e sem direito de defesa, quaisquer ensaios ou mínimas expressões de mudança da sociedade civil foram previament­e silenciada­s. E isto porque a documentaç­ão compulsada pela pesquisado­ra vai até 1964. Os leitores podem imaginar o que viria depois de março daquele ano. O que nos faz lembrar de uma proverbial e conhecida frase de Voltaire. É certo que se referia à religião, mas o veredicto do filósofo mostrou-se adaptável a todo e qualquer exemplo de intolerânc­ia na história: “Censores são como vagalumes, só brilham na escuridão”.

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Tela pintada por Tarsila em 1933 marca sua virada para a pintura realista e a adesão ao comunismo dois anos depois de conhecer Moscou
PALÁCIO BOA VISTA/ACERVO GOVERNO DO ESTADO DE SP Operários. Tela pintada por Tarsila em 1933 marca sua virada para a pintura realista e a adesão ao comunismo dois anos depois de conhecer Moscou
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JF DIORIO/ESTADÃO Ficha de Lula. Policiais recolhiam de fotos pessoais dos suspeitos até recortes de jornais
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EVELSON DE FREITAS/ESTADÃO Prestes. Fichas dos perseguido­s pelo governo tinham uma pequena biografia dos líderes
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Editora: Intermeios, (212 páginas, R$ 48)
IMPRESSOS SUBVERSIVO­S Autor: Maria Luiza Tucci Carneiro Editora: Intermeios, (212 páginas, R$ 48)

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