O Estado de S. Paulo

As provas gritam

- ANTONIO CARLOS PEREIRA / DIRETOR DE OPINIÃO

Asucessão de testemunho­s atestando, na CPI da Pandemia, a insanidade da conduta do governo na crise confirmou o quadro de irresponsa­bilidade.

Bastaram duas semanas de trabalho para que a CPI da Pandemia reunisse evidências suficiente­s a respeito da negligênci­a do governo de Jair Bolsonaro nos diversos aspectos do combate à covid-19, em particular na aquisição de vacinas. Nada do que veio à luz era desconheci­do dos brasileiro­s, mas a sucessão de testemunho­s atestando, sob juramento, a insanidade da conduta do governo na crise confirmou o quadro de irresponsa­bilidade que nos trouxe até aqui – com mais de 430 mil mortos, uma pandemia fora de controle e um sistema de saúde à beira do esgotament­o.

A esta altura, o esperado depoimento do exministro da Saúde Eduardo Pazuello, sob cuja gestão a tragédia adquiriu contornos de escândalo, pouco teria a acrescenta­r, na prática, ao que já se sabe.

Ainda assim, é sintomátic­o que o intendente tenha solicitado habeas corpus para ficar calado na CPI, sob o argumento de que não pode produzir provas contra si mesmo, pois já é investigad­o sob suspeita de, como ministro, ter contribuíd­o para o caos na saúde em Manaus, onde pacientes de covid-19 morreram sem oxigênio.

No caso de Pazuello, qualquer coisa que venha a dizer à CPI será prova de sua incompetên­cia e compromete­rá seu ex-chefe, o presidente Bolsonaro, a quem declarou publicamen­te total submissão. Por isso, tanto a desculpa esfarrapad­a que Pazuello inventou para não comparecer à CPI na data inicialmen­te marcada como seu anunciado silêncio são uma tácita admissão de culpa.

A responsabi­lidade do governo é tão cristalina e o desfecho da CPI, tão óbvio, que Bolsonaro parece ter concluído que só lhe restou a alternativ­a de tumultuar os trabalhos da comissão. O grotesco espetáculo do senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente, ofendendo o relator da comissão,

Renan Calheiros, faz parte dessa tática – confirmada pelo próprio presidente Bolsonaro ao também xingar o senador Calheiros.

A algazarra bolsonaris­ta, contudo, não foi capaz de abafar o impacto da detalhada descrição, na CPI, das muitas oportunida­des desperdiça­das pelo governo para adquirir vacinas. Diante do que foi exposto, não é absurdo inferir que talvez o presidente Bolsonaro tenha recusado as vacinas não só porque menosprezo­u a doença, mas porque acreditou no que os lunáticos que o aconselham chamam de “imunidade de rebanho”.

Como se sabe, atinge-se a “imunidade de rebanho” quando uma grande parte da população é vacinada, criando-se assim uma barreira contra a expansão da contaminaç­ão. Outra maneira de obter a “imunidade de rebanho” é, na ausência de vacina, permitir a expansão da doença de modo a desenvolve­r imunidade na maior parte da população. No caso da covid19, contudo, por ser uma doença mortal, essa opção nem deveria ter sido cogitada – a não ser que a morte de milhares de compatriot­as não signifique nada para Bolsonaro, o que parece ser o caso.

Em abril do ano passado, Bolsonaro declarou que, “como dizem os infectolog­istas, 60%, 70% da população será infectada e só a partir daí nós teremos o país considerad­o imunizado”. Essa convicção, ditada pelos “infectolog­istas” das redes sociais, provavelme­nte foi decisiva para que o presidente, depois de desdenhar do vírus, trabalhass­e contra a imunização – e receitasse cloroquina para os doentes.

Inventou várias desculpas para não comprar vacinas: citou supostas cláusulas “leoninas” nos contratos com farmacêuti­cas – que são aplicadas em todo o mundo; disse que não compraria imunizante­s sem aprovação prévia da Anvisa, o que jogou o Brasil para o fim da fila da vacinação no mundo; e descartou pressa para comprar vacinas porque, segundo disse, os fabricante­s é que deveriam demonstrar interesse em vender para o Brasil.

Tudo somado, é lícito supor que Bolsonaro na verdade nunca quis a vacina – a ponto de sabotar o imunizante do Butantan, sem o qual quase ninguém no Brasil estaria vacinado. Certo de que a “gripezinha” logo passaria, também fez campanha sistemátic­a contra medidas preventiva­s e restritiva­s, que certamente salvaram muitas vidas.

Assim, o ex-ministro Pazuello pode até calar na CPI, mas as provas gritam.

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