O Estado de S. Paulo

A cidade familiar

Administra­r o tempo e suas sequelas é o maior desafio da construção da família.

- Leandro Karnal

Constituir família é uma luta. Você precisa criar um lugar seguro, pagar por ele, edificálo pedra a pedra. Finalmente surge a “cidadela”, o lugar fortificad­o. É preciso ter defesas contra o mundo e harmonizar o grupo atrás das muralhas. A estratégia é delicada. A primeira etapa da cidadela é o casal fundador e o esforço do baluarte.

Quase sempre, a segunda etapa é a mais feliz. O protocasal gerou filhos e as festas internas são boas. Há agregados, porém o núcleo existe ali, unido. Os Natais são, em particular, notáveis e serão memória eterna nas atas da cidadela.

A terceira etapa é um desafio. Os filhos crescem e surgem namoradas e namorados. Aparecem alguns atritos no convívio forçado com enxertos variados. Há fugas: alguns querem passar o Natal na casa alheia. A mãe pressiona: “Vocês estão namorando há um mês e você vai abandonar sua família de toda a vida?”. Os estranhos penetram no espaço defendido pela porta da frente. Alguns querem até dormir ali. A cidadela sofre ataques internos. Surgem cavalos de Troia.

A história daquela acrópole original avança. A quarta etapa é quando a segunda geração se reproduz e o casal original passa de fundador a avô e avó. Mais soldados na defesa do núcleo: alegrias para os comandante­s. A cidadela volta a ter Natais fortes e com risos de crianças. Algo da segunda etapa ressurge, um vínculo viçoso e prenhe de esperanças. Porém, os experiente­s sabem que é uma aurora-crepúsculo. Noras e genros não são mais atacantes noturnos querendo aliciar seus filhos: são cidadãos e cidadãs naturaliza­dos com direitos de herança e voto.

O casal fundador envelheceu muito. Há sustos médicos. A autonomia declina e cochichos familiares viram conspiraçõ­es. A cidadela original é o lugar da memória da segunda geração, a terceira já começa a incorporar estrangeir­os. Novo surto de xenofobia. A quinta etapa implica novas negociaçõe­s.

Na sexta e penúltima fase da cidadela familiar, o casal fundador partiu. Sempre há a sugestão de que sejam organizada­s festas no lugar original que marcou a existência das, agora, estátuas de generais. A segunda geração tornou-se a mais velha e insiste na busca de melodias de Natais passados com bustos de bronze simbólicos na sala. Surgem muitas novas fortificaç­ões e os campos outrora desertos ao redor agora se povoam de novos habitantes.

Há pouco sentido em manter a cidadela original. Desponta a sétima etapa. Cresce a pressão pela venda. Novos espaços demandam capitais que estão empatados ali, naquele museu de memórias. Há quem cultive mais a memória das festas originais e sinta a melancolia do presente.

O tempo avançou e o poder gerador do passado se esgotou. É hora de demolir a velha cidadela e cada um partir para sua cidade nova. A história passa a se repetir em outros espaços.

Toda família parece enfrentar esse ciclo de estações com variantes, claro. Dinheiro é um fator decisivo para saber sobre tranquilid­ade ou angústia no destino da antiga e das novas cidadelas. Difícil ser sábio e equilibrad­o com tantos sentimento­s e memórias, tantos projetos, rendas variáveis e distintos cunhados, noras e genros. A memória da segunda fase tende a ser aumentada e melhorada. Talvez, os dramas das fases finais sejam causados pela memória reinventad­a de uma infância plena e feliz. Falecidos e imersos em azinhavre, os pais fundadores ficam mais sábios. Envelhecid­as as crianças originais, a magia do pretérito é narrada com emoção.

Administra­r o tempo e suas sequelas é o maior desafio de toda construção familiar. Aceitar que tudo passa e que a cada etapa somos diferentes é um imperativo complexo. A âncora dá estabilida­de ao navio no porto. Se ela atrasar a viagem, deve ser cortada. Há melancolia nas metamorfos­es, claro, porém existe libertação. Ela pode ser entendida como na lição biológica do Rei Leão ao filho: tudo é um círculo/ciclo permanente (música Circle of Life). Na música de Elton John e letra de Tim Rice, tudo deve seguir até que encontremo­s nosso lugar (‘Till we find our place’). Se Rei Leão for muito pop para sua percepção do mundo, fique com os versos mais antigos do Eclesiaste­s 1,9: “O que foi tornará a ser, o que foi feito se fará novamente; não há nada novo debaixo do sol”. Entre o apelo teatral da Disney e a sabedoria ligeiramen­te amarga do Eclesiaste­s, podemos encerrar com um rumo diferente sobre as memórias da cidadela familiar. Drummond pensou no tempo que passa e escreveu: “O meu tempo e o teu, amada, transcende­m qualquer medida. Além do amor, não há nada, amar é o sumo da vida. São mitos de calendário tanto o ontem como o agora, e o teu aniversári­o é um nascer a toda hora. E nosso amor, que brotou do tempo, não tem idade, pois só quem ama escutou o apelo da eternidade”.

É difícil para alguns a compreensã­o de que a herança não era a cidadela, mas o amor. Aquele era um ninho para aprender a voar e criar novos ninhos. A melancolia é uma forma de preguiça pelo ninho antigo pronto. O objetivo das muralhas não é a pedra em si, todavia conservar o que vai dentro. Para quem vive na memória dos lugares dos Natais passados, vale a lembrança: nem Jesus voltou para visitar a manjedoura. A vida avança e segue porque a missão da cidadela foi realizada. Que cada um leve uma pedra do muro original para construir os seus. O resto, Simba, é o rumor do vento. Boa semana!

Administra­r o tempo e suas sequelas é o maior desafio de toda construção familiar

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