O Estado de S. Paulo

Ver ou não ver Se estamos em negação, nós nos escondemos e ignoramos até atrocidade­s.

- Alice Ferraz

Em 2021, por causa da pandemia, novas palavras passaram a fazer parte do nosso vocabulári­o diário. Ouvimos um sem-fim de vezes as palavras negacionis­mo, negacionis­ta, negação. Não me lembro de ter tido antes disso a noção exata do impacto que tal atitude podia ter em nossas vidas. Nesse espaço-tempo em que vivemos, o negacionis­mo está ligado a como pessoas ou grupos negaram e negam a existência e seriedade da covid-19, prejudican­do quem consegue enxergar o que realmente está acontecend­o. Mas o negacionis­mo, apesar de muito atual, não é algo novo no comportame­nto humano – talvez seja, infelizmen­te, um clássico.

Como contei aqui algumas vezes, sou casada com um judeu e fui muito próxima dos avós dele, imigrantes da Inglaterra e Alsácia (hoje França). Quando perguntei por que decidiram vir para o Brasil, sem serem fugitivos de seus países, que logo mais viveriam o horror nazista, me disseram que seus pais “enxergaram” que deveriam partir. Na época, lembro-me de começar a entender o que seria “não negar” um fato, ou melhor, encará-lo, por mais doloroso que seja e, assim, conseguir agir no tempo certo para tomar a atitude que possa até nos salvar a vida. Sendo tempos de negacionis­mo, tempos de polarizaçã­o, o que acontece nestes momentos é que cada um segura sua “verdade” com firmeza. Quem está em negação, normalment­e, mesmo depois do fato comprovado, tristement­e não muda de opinião, não entende que poderia ter “enxergado” e tomado outra atitude.

Lendo durante a semana passada a excelente e verídica história da escritora Edith Eva Eger, em A Bailarina de Auschwitz, me deparei com a imensa coragem de uma mulher que, tendo vivido o inferno deste campo de concentraç­ão, é clara, aberta e destemida ao admitir que sua família inteira vivia em negação e explica como esta atitude foi usada como proteção. Sem prestarmos atenção real e profundame­nte, podemos conviver com tudo, por mais absurdo que seja, seguindo a vida.

Se estamos em negação, podemos nos esconder para não notar atitudes irresponsá­veis de parceiros profission­ais, a falta de empatia do marido, a falta de cuidado de um filho e as mentiras e atrocidade­s de líderes e de uma nação. Mas a verdade é que a negação pode até confortar durante um tempo curto, mas cobra um preço alto demais a médio prazo. Colocar a verdade em primeiro plano, por maior que seja a dor e desconfort­o que possa trazer, tem um poder avassalado­r de reconstruç­ão, seja para implodir relações e dar espaço a outras ou para dar uma nova oportunida­de ao parceiro profission­al, ao filho, ao marido e à própria vida.

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ILUSTRAÇÃO DE JULIANA AZEVEDO
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