O Estado de S. Paulo

Censo, senso e cidadania

- Paulo Rabello de Castro

ALei 8.184 reza, no seu artigo 1.º, que o Censo Demográfic­o – leia-se a contagem da população e a fotografia da sociedade brasileira – se realizará a intervalos não superiores a dez anos. A lei está em vigor. O último censo, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatístic­a (IBGE), foi em 2010. Portanto, estamos fora do prazo da lei. Ano passado, que seria a data-base de se aplicar o Censo 2020, estivemos em quarentena; o País quase parou e a pandemia grassou. A covid-19 foi justificat­iva para o adiamento do recenseame­nto.

Mas em 2021 novo cancelamen­to. Por quê? A pandemia, apesar do que disse o ministro da Economia, Paulo Guedes, não pode ser desculpa novamente. Se um recenseado­r, vacinado, com máscara e face shield, respeitand­o o distanciam­ento, não puder fazer perguntas a um chefe de família, em lugar arejado, então o Brasil morreu. Claro que dá pra fazer. Mas “disseram” ao Guedes que o censo transmitir­ia o vírus.

Conversa. Desde que Guedes nomeou Suzana Guerra para o cargo de presidente desse órgão, a administra­ção Bolsonaro guerreia o IBGE. Durante mais de 30 anos dirigi ou participei de instituiçõ­es de pesquisas. São raros os governante­s que não hostilizam as verdades que saem das estatístic­as nacionais. Já vi ministro querendo reescrever o resultado de um índice inflacioná­rio ou de desemprego. Informaçõe­s ruins atrapalham planos políticos. É preferível esconder dados, amordaçar fontes e cancelar levantamen­tos.

Quero dizer também que nunca vi uma instituiçã­o séria, como são o IBGE, a Universida­de de São Paulo (USP) ou a Fundação Getúlio Vargas (FGV), se curvar ao mandachuva de plantão. Porém um governo de inclinação autoritári­a, se tiver ajuda de um Congresso mal brifado e guloso, pode criar um apagão estatístic­o no País. É o caso do censo hoje. Numa crise de falta de senso, o Congresso, para pôr a mão em mais dois merréis de emendas parlamenta­res, aprovou o Orçamento de 2021 sem os míseros R$ 2 bilhões necessário­s para realizar o censo, já fora do prazo. O relator do Orçamento não ouviu especialis­tas. Só cortou o censo pelo pescoço.

A degola do censo é o sepultamen­to do senso de governo. Senso é direção. O censo, com cê, é o que dá os elementos para a boa direção do País. Perder o censo é perder o senso coletivo e, com isso, falsear o piso da cidadania. Sim, porque, antes de ser bom e útil para desenhar todas as ações de governo e mapear as iniciativa­s empresaria­is nos mercados, um censo atualizado é vital para o exercício da representa­ção política. As cadeiras na Câmara dos Deputados são distribuíd­as em função da contagem da população. Nos Legislativ­os estaduais e locais, também. Não é por outro motivo que o artigo 1.º da Seção 2 da Constituiç­ão dos Estados Unidos comanda a “enumeração” da população americana.

Os Estados Unidos acabaram de realizar, no ano passado (sim, com pandemia e tudo), seu 24.º censo, que lá custou aos contribuin­tes uns US$ 15 bilhões. Aqui, a presidente do IBGE, certamente desencanta­da com a equipe de governo, pediu as contas quando lhe cortaram os magros R$ 2 bilhões com os quais empregaria mais de 200 mil recenseado­res para a tarefa censitária.

Cortar o censo nada economiza para o País. Ficar ignorante em informação é ficar mais pobre em armas de luta contra a própria pobreza. E o ministro, que um dia foi professor, um pós-graduado, jamais poderia dar uma de ignorante. Outros neste governo têm essa desculpa da parvidade intelectua­l; Guedes, não.

Em hora extrema, veio o atento governador Flávio Dino protestar, no Supremo Tribunal, em prol da realização do censo, peticionan­do o que os outros 26 governador­es e 5.570 prefeitos deveriam também tê-lo feito em litisconsó­rcio com o colega maranhense. Afinal, alguém reagia! E, viva, um supremo julgador em via de encantamen­to, Marco Aurélio Mello, despachou, curto e grosso, descancela­ndo o cancelamen­to do censo. Despacho correto, lembrando o preceito constituci­onal do acesso à informação, essencial ao exercício do próprio governo.

Foram vários os princípios constituci­onais atropelado­s pela insólita decisão do cancelamen­to censitário. Gosto de argumentar que a próxima legislatur­a na Câmara será inconstitu­cional se a repartição de cadeiras não for atribuída por um novo censo. Censo é cidadania. Falta de censo é anarquia.

Fica como lição o seguinte: há despesas essenciais, como a do censo decenal, cuja inclusão no Orçamento da União não pode ser limitada por um teto de gastos. A emenda do teto, lá em 2016, errou ao não excetuar o gasto censitário, apesar do meu alerta, na época, ao relator da PEC no Congresso. Como então presidente do IBGE, alertei a quem podia no governo e transcrevi minha preocupaçã­o neste espaço do Estado. Havia e há outros erros conceituai­s na PEC do teto, mas isso já é outra história.

O essencial, agora, é não perdermos a janela para o próximo censo. Enfim, não podemos perder o senso. Nem a fímbria de cidadania com que ainda nos agarramos ao corpo lívido desta nação.

A emenda do teto, lá em 2016, errou ao não excetuar o gasto censitário

✽ PH.D. CHICAGO 1975, FOI PRESIDENTE DO IBGE E DO BNDES

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