O Estado de S. Paulo

Autocracia ou democracia

- Luiz Sérgio Henriques

Difícil recusar o diagnóstic­o de que ainda pior que um primeiro governo nacional-populista será sempre o segundo, ocasião em que o aspirante a autocrata, reeleito, tentará levar a cabo a obra de deliberada destruição institucio­nal encaminhad­a antes. Com força e ambição dobrada, no segundo mandato a estratégia de concentraç­ão de poder seguirá sua “ascensão irresistív­el”, ainda que em meio ao caos que todo político autoritári­o necessaria­mente fomenta e de que não por casualidad­e se nutre.

É de tal ordem a nossa circunstân­cia que, mesmo quando não se reelege, o potencial autocrata consegue mobilizar forças que a ele cegamente obedecem e lhe permitem sobrevida. Não importa que esteja fora do poder, ainda será capaz de suscitar paixões coletivas e insuflar ações que nem com muita boa vontade podemos qualificar como minimament­e razoáveis. É o caso do ex-presidente Donald Trump, um dos “autores” mais em evidência do manual populista de exercício do poder e esvaziamen­to das formas civilizada­s de mando, a demonstrar que hoje o risco está por toda parte, e não apenas nas sociedades em que a democracia continua a ser uma “plantinha tenra”.

Trump, como é notório, não reconhece a derrota. Volta a ocupar insolentem­ente a cena, reiterando, como mantra, que triunfou duas vezes sobre os adversário­s, em 2016 e em 2020, e haverá de vencer uma terceira, em 2024. Em circunstân­cias normais, o riso corroeria a “grande mentira” trumpista, deixando a nu o caráter golpista das suas proclamaçõ­es, de resto não atestadas por nenhuma autoridade eleitoral, seja em que nível for. Mas, como dissemos, temos estado bem longe da normalidad­e, o que recomenda cuidadosa atenção sobre os perigos que nos circundam.

Negar a evidente derrota é algo muito grave. Valer-se de ambientes e recursos “virtuais” para montar uma realidade paralela em que vivem aprisionad­os milhões de fanatizado­s é um desafio inédito para as democracia­s. Equivale a assumir uma atitude subversiva em face do governante legítimo, questionar o mecanismo da alternânci­a e, em perspectiv­a, transforma­r o adversário político em inimigo interno. Numa palavra, equivale a postular para si, assim que possível, já na próxima rodada eleitoral, o poder que se atribui a déspotas ou, antes, que eles mesmos se atribuem, exproprian­do a cidadania.

O manual do nacional-populismo, assim rascunhado até na tradiciona­l democracia norte-americana, ainda não chegou à página final e conhece outras modulações. Há versões de esquerda, como, bem perto de nós, a venezuelan­a, com resultados práticos que talvez superem os produzidos a seu tempo pela atroz ditadura de Pinochet. Nayib Bukele, em El Salvador, consegue fervorosos admiradore­s na direita verde-amarela ao lançar o povo – o “seu” povo – contra a Suprema Corte. Na memorável República Francesa, de trajetória conturbada, mas, de todo modo, altamente representa­tiva do Ocidente democrátic­o, militares extremista­s seguem a cartilha da islamofobi­a e agitam a ameaça, temida entre todas, de “guerra civil”.

Nosso próprio presidente nacional-populista contabiliz­a, já na metade final do mandato obtido em 2018, atropelos consideráv­eis à democracia – alguns de demorada e custosa reversão. Seria impróprio atribuir-lhe a paternidad­e da tática primária e manipulado­ra do “nós contra eles”, mas havemos de convir que a elevou ao estado da arte. A “utopia” de Jair Bolsonaro – para usar a imagem cunhada por Javier Cercas sobre o tenente-coronel Tejero Molina, que certa vez ocupou a tiros o Parlamento espanhol – é a de um País reduzido a quartel, com todo o pessoal uniformeme­nte treinado para combater uma guerra absurda, por anacrônica, contra “eles”, os “comunistas”, que nem existem mais como força antissiste­ma.

Pulsões antiestabl­ishment, ao contrário, estão disseminad­as mundialmen­te entre os diferentes nacionalis­mos autoritári­os. A demagogia trumpista explora insuficiên­cias do sistema eleitoral para, como vimos, construir uma “narrativa” recheada de eleitores fantasmas, mortos e imigrantes ilegais que lhe teriam roubado a vitória. A demagogia bolsonaris­ta, em face de um sistema de votação muito diverso e muitíssimo mais seguro, vai pelo mesmo caminho, porque o que interessa não é o fundamento ou a verossimil­hança deste ou de qualquer outro argumento, mas a “desconstru­ção” das instituiçõ­es e a difusão de um clima generaliza­do de sombras e suspeitas. Num caso como no outro, o triunfo do oponente nunca é legítimo. Não pode ser. Não pode haver adversário­s de boa-fé.

É iluminador­a a afirmação, recentemen­te feita pelo presidente Joe Biden, de que o conflito central da nossa época opõe democracia­s e autocracia­s. Populistas podem ser eleitoralm­ente competitiv­os e nada impede que, apelando a recursos retóricos duvidosos e valendo-se sem cerimônia das alavancas do poder, vençam uma vez e voltem a vencer mais vezes. Sempre que o desfecho for esse, nenhum sentido terá a fanfarra “libertária” das suas performanc­es histriônic­as, pois os países que controlam não mais estarão no rol das grandes democracia­s.

✽ TRADUTOR E ENSAÍSTA, É UM DOS ORGANIZADO­RES DAS ‘OBRAS’ DE GRAMSCI NO BRASIL

O manual do nacional-populismo ainda não chegou à página final

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