O Estado de S. Paulo

Crespo, um argentino com alma de brasileiro

Hernán Crespo, técnico do São Paulo Em três meses no Brasil, treinador ganha confiança e carinho no Morumbi, não tem luxo, é simpático e não abre mão da família

- Gonçalo Junior

Depois de 24 anos na Europa, como um atacante multicampe­ão, dirigente e técnico, o filho de 45 anos decidiu que era hora de voltar à Argentina. Era o momento de ficar com os pais, em Florida, bairro de Vicente López, na Grande Buenos Aires. O motivo foi o mesmo que colocou a vida de muita gente de pernas para o ar: o início da pandemia. No retorno, fazia compras no mercado e na farmácia, conversava, fazia companhia. Foram meses assim. Depois, viajou de novo. Desta vez para o Brasil. O filho é Hernán Crespo, técnico do São Paulo.

Embora seja uma história corriqueir­a – quase todo mundo se desdobrou para cuidar dos idosos, grupo mais vulnerável ao coronavíru­s no início –, ela é contada com orgulho pelos argentinos. A ideia é ilustrar como o filho milionário, que construiu a vida em Milão e Londres, não delega cuidados com a família do outro lado do oceano. O caso percorreu as redes sociais a TV. Vale lembrar que Crespo é uma lenda do futebol argentino, com presença em três Copas e carreira consagrada. Com exagero, alguns torcedores mais apaixonado­s gostam de compará-lo a Ronaldo.

Há outros exemplos dessa idolatria familiar. Um deles foi o reencontro com as filhas na quarentena. Crespo é pai de três meninas: Nicole (16 anos), Sofía (14) e Martina (5) com a modelo italiana Alessia Rossi. Eles se casaram em 2005 e se separaram em 2019. As três moram na Itália com a mãe. Quando o pai veio para a Argentina, elas ficaram. Foi uma separação de mais de um ano. Ficou famoso o seu choro desconsola­do ao vê-las na final da Sul-Americana conquistad­a pelo seu clube, o Defensa y Justicia, sobre o Lanús, em janeiro, em Córdoba.

Só mais uma história. O terno que Crespo usa à beira do gramado é uma homenagem ao pai, Jorge, que trabalhava na Bolsa de Valores de Buenos Aires. Quando adolescent­e, ele via o pai sair para trabalhar e lamentava ter de usar sempre o uniforme esportivo do time.

Crespo valoriza os relacionam­entos não só dentro de casa. Quase diariament­e, ele conversa com um jogador do São Paulo. Papo individual, olhando no olho. A ideia é criar vínculo para conhecer melhor o atleta. São quase sessões de coaching que procuram dar estabilida­de emocional para suportar a pressão e render em campo. Neste aspecto, trabalha em parceria com o preparador Alejandro Kohan. Com esse “treinament­o emocional”, recuperou Pablo, transformo­u Vitor Bueno em 9 e deslocou Dani Alves para a lateral. Os ganhos individuai­s influencia­m no desempenho coletivo. O time está invicto na Libertador­es, fez a melhor campanha na fase de grupos do Paulistão e despachou a Ferroviári­a: 4 a 2.

Mas Crespo também gosta das brincadeir­as e muvucas. Quando os jovens fazem sua primeira viagem, por exemplo, eles passam por uma espécie de batismo, um trote do bem. É a hora de um discurso, de cantar uma música ou contar piada. Crespo está sempre no meio deles. Não é do tipo que conta piada. É centrado, mas interage.

Apesar dos poucos meses no Morumbi, o argentino é descrito como um “cara querido” e “humilde”. Ele cumpriment­a todo mundo quando chega. É difícil vê-lo de cara fechada. Curiosamen­te, os adjetivos “humildade” e “simplicida­de” foram os mesmos escolhidos por Juan Martín Moreno, assessor do Defensa y Justicia.

Ele surpreende­u muita gente ao falar um português competente para os seus dois meses de trabalho no Brasil. “Acho que é uma questão de respeito com o lugar onde estou, com as pessoas. Gosto de aprender”, disse. Crespo fala inglês, espanhol e italiano. O Estadão solicitou uma entrevista, mas foi informado de que ele concederá exclusivas “com o tempo”.

O jogador que fez fama na Europa não está sozinho no Brasil. Fez questão de trazer sua comissão. A maioria dos profission­ais mora no mesmo condomínio na Barra Funda, nas proximidad­es do CT. Eles estão sempre juntos. Para ir ao treino, costumam usar uma van do clube. Crespo não dirige pelas ruas de São Paulo. No começo, usava o motorista do clube, mas agora

vai em grupo. Às vezes, eles até vão treinar a pé. Em uma postagem nas redes com parte dos argentinos, o técnico se referiu ao grupo como “La Banda”.

Surpresa

Crespo virou técnico nas divisões inferiores do Parma. Isso foi em 2014, dois anos após encerrar o ciclo como jogador no clube onde começou a brilhar na Europa, entre 1996 e 2000. Também foi gestor, o que permitiu ver a estrutura de um time, mas sempre deixou claro que gostava mesmo era de estar no campo. E tinha de viver a experiênci­a no seu país.

O jornalista Martín Goldbart, do periódico argentino La Nación, afirma que foi uma surpresa quando ele conseguiu levar o

Defensa y Justicia ao título da Sul-Americana. Foi o primeiro troféu continenta­l da equipe, encerrando jejum de 23 anos sem títulos. “Ele era uma incógnita. Tinha ideias de um técnico ofensivo, gosta dos goleiros que jogam com os pés e que os zagueiros saiam jogando. Mas não se imaginava que formaria um time tão competitiv­o. Foi uma surpresa”, afirmou o colega.

Crespo é um treinador em ascensão. A boa campanha no São Paulo tem de ser posta na balança com alguns fiascos. Em 2016, foi demitido do Modena, da Itália. Venceu 11, perdeu outros 19 e empatou cinco. Na Argentina, sua passagem pelo Banfield não deixou saudades.

No Brasil, seu maior teste começa agora, nas fases agudas do

Paulistão. Vai ter de suportar a pressão que virá se o time fracassar. Para isso, outros de seus trunfos são a serenidade e os pés no chão. Aqui vale lembrar de outra história, mais trágica e antiga, de 1993. Um incêndio na discoteca Kheyvis, em Buenos Aires, causou a morte de 17 jovens. Onde cabiam 150 estavam 600. Muitos eram estudantes do Colégio La Salle, em festa de formatura. Crespo, então com 18 anos, escapou da tragédia. Estava concentrad­o com o River Plate. Questionad­o pelo Clarín se o futebol havia salvado sua vida, o menino mostrou todo o seu equilíbrio.

“Não podemos ser dramáticos. Não sabemos o que ia acontecer. Muitos dos meus colegas também se salvaram”.

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RUBENS CHIRI/SÃO PAULO FC.NET Crespo. Argentino faz bom começo de trabalho no São Paulo e aposta na final do Paulistão

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