O Estado de S. Paulo

Bombas, refúgio e vida nas ruas: a vitória de Ibrahim

Tóquio-2020. Vítima da guerra na Síria, nadador perdeu parte da perna, foi refugiado na Grécia e se tornou atleta paralímpic­o no Rio

- Raul Vitor

Em 3 de outubro de 2012, o nadador sírio Ibrahim Al-Hussein acordou no hospital de campanha sem uma parte de uma das pernas. No dia anterior, havia saído de casa para ajudar um amigo ferido na linha de frente da guerra na Síria quando foi surpreendi­do pela explosão de uma bomba. A tragédia, além de lhe tirar a perna direita, rendeu a implementa­ção de uma série de placas de metal no nariz, na perna esquerda e na órbita de um dos olhos. “Eu não conseguia sentir nada. Não entendia o que estava acontecend­o. A tensão na atmosfera era enorme. Havia muita poeira e fumaça no local”, contou o nadador ao Estadão oito anos depois do ocorrido.

Depois daquele dia, a vida de Ibrahim mudou. Ele teve de deixar a Síria para fugir da guerra. Do dia para a noite, virou refugiado sem ao menos entender o significad­o daquela palavra. Mudou-se primeirame­nte para a Turquia e depois para a Grécia, onde teve a ajuda de um médico para voltar a praticar o esporte que fazia parte de sua vida desde os cinco anos. Ibrahim começou a nadar por influência do pai, que nos anos 70 foi bicampeão mundial de natação. Suas primeiras braçadas foram dadas nas águas do rio Eufrates, que beira sua cidade natal, Deir ez-Zor, um dos últimos pilares do Estado Islâmico.

Ainda em processo de recuperaçã­o, Ibrahim foi atrás de refúgio. Com o auxílio de uma cadeira de rodas, entrou num pequeno barco que seguia o curso do rio em direção à Turquia. A vida no país vizinho não deu certo. Durante um ano e meio, ele rodou por diversas cidades turcas em busca de tratamento, mas não obteve nada muito eficaz.

Em 2014, decidiu pagar um contraband­ista de pessoas para chegar à Europa. “Atravessar o Mar Mediterrân­eo parece tranquilo olhando no mapa, mas é extremamen­te perigoso. Chegando em Samos, fomos recepciona­dos por policiais. Passei algumas semanas em um acampament­o para refugiados até conseguir me mudar para Atenas. A ideia era seguir viagem em direção ao norte da Europa, mas eu não tinha como continuar dali”, recorda-se.

Sem ter onde morar, já que Atenas não oferecia suporte para refugiados, Ibrahim viveu em situação de rua até encontrar um compatriot­a que mudou o seu destino. O sírio, que vivia na Grécia havia mais de 20 anos, lhe indicou um médico conhecido, Angelos Chronopoul­os, um especialis­ta em próteses ortopédica­s. “No dia seguinte, ele me levou ao médico”, conta.

O custo para adquirir uma “perna nova” era alto. Sem ajuda, o atleta teria de desembolsa­r cerca de 12 mil euros, o equivalent­e a R$ 80 mil. Chronopoul­os recusou qualquer contrapart­ida de Ibrahim e lhe deu uma prótese sob medida. “Consegui o tratamento que tanto procurava após a explosão”, afirmou.

Sem precisar mais da cadeira de rodas, Ibrahim foi atrás de um emprego. Ele agarrou a primeira oportunida­de que encontrou. “Eu limpava banheiros em um café. Não me importava. Estava tão feliz, que acordava alegre todos os dias.” Com o dinheiro do novo emprego, o nadador conseguiu pagar por uma moradia e, enfim, restabelec­er sua vida em Atenas.

Volta às piscinas. Foi então que Ibrahim decidiu se reconectar com aquilo que mais gostava de fazer: nadar. Demorou, mas ele encontrou um clube de natação que o aceitou como atleta. “A natação fazia parte de mim. Era algo que estava em minha vida havia muito tempo.”

Depois de alguns meses treinando forte, ele venceu um campeonato em Atenas. Pouco tempo depois, chegou em primeiro e segundo lugares no campeonato Panhelleni­c de natação nas provas de 50m e 100m livres, respectiva­mente.

O sucesso foi imediato. Tanto que sua performanc­e chamou a atenção do Comitê Olímpico Helênico, que propôs sua participaç­ão no revezament­o da tocha olímpica dentro do campo de refugiados de Eleonas, em Atenas, para os Jogos Olímpicos do Rio, em 2016.

“A mídia local falava muito de mim. Por ser refugiado e ter fugido da guerra. Carregar a tocha sempre foi uma honra para mim. Sempre foi um sonho fazer parte de uma Olimpíada. Ter participad­o dos Jogos do Rio, em 2016, como refugiado, foi incrível. Pude repassar nossa mensagem para o mundo”, conta Ibrahim Al-Hussein.

Após sua participaç­ão na Paralimpía­da no Brasil, onde competiu nos 50m e 100m livres, terminando em sexto e sétimo lugares, respectiva­mente, Ibrahim aprimorou os treinos em Atenas. Em 2017, fez sua estreia no Campeonato Mundial na Cidade do México e, em 2019, voltou a disputar o torneio, realizado em Londres, na Inglaterra.

Hoje, ele busca vaga para os Jogos de Tóquio 2020. Recentemen­te, Ibrahim ficou em terceiro lugar na 15.ª Copa do Mundo CMAS Finswimmin­g, em Lignano, na Itália. O anúncio de sua qualificaç­ão ou não para a Olimpíada no Japão acontece no próximo mês, em junho. Até lá, Ibrahim Al-Hussein vai continuar treinando e sonhando com a competição.

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ALKIS KONSTANTIN­IDIS/REUTERS-26/4/2021 Nova chance. Ibrahim encontrou seu propósito de vida no esporte e agora busca uma vaga nos Jogos Paralímpic­os de Tóquio 2020 na natação

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