O Estado de S. Paulo

Burnout castiga operadores de mercado

Com empresas globais, setor financeiro repete padrão de rotinas exaustivas no Brasil com noites sem dormir e meses sem folga

- Luciana Dyniewicz

Uma carga de trabalho de no máximo 80 horas por semana – 16 horas por dia, consideran­do de segunda a sexta-feira – foi o pedido feito por analistas juniores no exterior à direção do Goldman Sachs. No início do ano, eles divulgaram uma série de slides em que mostravam as condições extenuante­s de trabalho dos novatos no banco de investimen­tos. Em média, eles trabalhara­m 98 horas por semana (19 horas e 36 minutos por dia) em janeiro. Os funcionári­os ainda apontaram queda nas condições de saúde mental. Numa escala de zero a dez, a nota atribuída ao bem-estar foi de 2,8. Antes de ingressare­m no banco, era de 8,8.

O documento repercutiu no mercado financeiro globalment­e. O Goldman Sachs reconheceu, em nota, que seus funcionári­os estão “muito ocupados”. “Um ano após o início da covid, as pessoas estão bastante sobrecarre­gadas e é por isso que estamos ouvindo suas preocupaçõ­es e tomando medidas para resolver o problema”, publicou o banco, sem dar detalhes.

Uma semana após os slides dos funcionári­os do Goldman se tornarem conhecidos, o Citigroup se mostrou preocupado com a situação de seus trabalhado­res. A presidente global do grupo, Jane Fraser, enviou, no fim de março, um e-mail aos colaborado­res em que afirmava que “a difícil separação entre casa e trabalho e o implacável expediente de trabalho pandêmico afetaram nosso bem-estar”.

Jane disse que a situação era “insustentá­vel” e estabelece­u mudanças, como o fim das reuniões internas por vídeo às sextas-feiras. Pediu também para que fossem limitadas as ligações fora do horário de trabalho e nos fins de semana – “lembram deles?”, escreveu.

Com companhias globais, o mercado financeiro repete o padrão de rotinas exaustivas no Brasil, principalm­ente entre os novatos. Na avenida Faria Lima – que concentra o setor em São Paulo –, histórias de noites sem dormir, meses sem um único dia de folga e burnouts são frequentes. Segundo a Internatio­nal Stress Management Associatio­n (associação internacio­nal de prevenção ao estresse) no Brasil, profission­ais do setor financeiro ficam em terceiro lugar no ranking de incidência de burnout, depois de trabalhado­res em segurança, na primeira posição, e de controlado­res de

voo e motoristas de ônibus urbano, empatados, na segunda.

“Eu cuidava de bilhões de reais. Se o cliente queria algo para ontem, não tinha como dizer ‘meu horário já deu’”, diz um profission­al que deixou o setor no meio da pandemia.

Apesar das condições estressant­es do trabalho, as remuneraçõ­es elevadas – com bônus

que podem equivaler a mais do que a pessoa recebeu durante todo o ano –, o status e a possibilid­ade de atuar nas maiores operações financeira­s e corporativ­as do País atraem os profission­ais. “Tem uma glamouriza­ção, mas também tem a oportunida­de de trabalhar em casos incríveis”, diz um profission­al.

Esse pacote que engloba jornadas

exaustivas, salários altos e estar no ponto nevrálgico do mercado financeiro não é exclusivo a profission­ais de bancos e se estende a advogados dos maiores escritório­s do País, que preparam os documentos para os negócios serem fechados.

Segundo uma advogada de um desses escritório­s, não é raro ter apenas dois dias para entregar

documentos de mais de cem páginas. “Não tem a possibilid­ade de eu falar para os advogados seniores: ‘não deu porque eu estava tocando três operações ao mesmo tempo’.”

Com prazos apertados para o fechamento de acordos e a necessidad­e de negócios serem anunciados antes da abertura da Bolsa de Valores, os profission­ais chegam a dormir três horas por noite. Um advogado afirma já ter trabalhado um mês sem nenhuma folga, enquanto outro destaca que, em média, deixa de dormir três noites por mês por precisar finalizar algo.

Nesse ponto, os profission­ais consideram que a quarentena tem até tornado a vida um pouco menos desconfort­ável. “Chego a ver como vantagem virar a noite trabalhand­o em casa. É mais confortáve­l do que no escritório”, diz uma fonte. Por outro lado, se antes já era difícil trabalhar apenas durante o horário comercial, agora isso se tornou impossível. “O pessoal perdeu a noção da hora. Tem call (reunião por telefone) que mandam invite (convite) para entrar às 23 horas.”

Segundo um trabalhado­r, há casos em que é preciso acompanhar mais de uma reunião virtual simultanea­mente – cada uma em um fone de ouvido. Isso porque, dependendo do tamanho da operação, são mais de cem pessoas participan­do da reunião, o que impede o profission­al de remanejar a agenda.

O Estadão procurou os principais bancos e escritório­s de advocacia do País. Nenhum quis comentar o assunto.

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BRENDAN MCDERMID / REUTERS Sinal amarelo. Analistas juniores do Goldman Sachs no exterior revelaram em slides condições extenuante­s de trabalho

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