PRÍNCIPE SAINT-EXUPÉRY VOLTA A SER NOTÍCIA NO MUNDO
Família disputa cartas do autor de ‘O Pequeno Príncipe’, que foi leitura oficial no México e proibido na Argentina
A receita foi Chico Buarque quem deu, nas redondilhas do baião Paratodos. A cura para a ‘malaise’ brasileira estava, segundo ele, no melhor de nossa música popular. Use Dorival Caymmi, fume Ary Barroso, cheire Vinicius de Moraes, beba Nelson Cavaquinho, aviou Chico, anexando à prescrição mais meia dúzia de infalíveis panaceias musicais, entre as quais Tom Jobim, o “maestro soberano”, inspirador da terapia. De eficácia permanente, agora mais do que em 1993, quando foi lançada – mais do que nunca, eu diria – recomendo sua aplicação emergencial em massa. Tenho um amigo que acredita só estar segurando a depressão gerada pela pandemia, o isolamento social compulsório e o governo Bolsonaro porque ouve, “sem parar”, João Gilberto. Foi esta a vacina que escolheu para revisitar espiritualmente o Brasil de outras eras e outros ares, antípoda desta ruína sanitária, moral, econômica, ambiental e social perversamente engendrada pelo bolsonarismo.
Meu antídoto preferido a isso tudo aí, que me perdoem Pixinguinha, Noel, Caymmi e Gonzagão, continua sendo Tom Jobim. Seu cancioneiro é a trilha sonora que me evoca com mais variedade de sensações e sentimentos o país e o ethos do seu tempo, que em parte foram meus e de muitos de vocês também. Induzido pelo título, peguei o álbum Antonio Brasileiro. Tom era brasileiro de nascença, sobrenome e espírito, que luxo! Na capa, ele acende um charuto, seu derradeiro prazer tabagístico. No encarte, Ipanema resplandece, com o Morro Dois Irmão ao fundo, tendo ao lado uma epígrafe de Antoine de Saint-Exupéry (aquela: “O essencial é invisível aos olhos”, mas em francês).
Incrível como O Pequeno Príncipe vez por outra aparece nos lugares mais surpreendentes e em situações as mais inusitadas. Ser o livro de cabeceira de 99,9% de nossas misses na certa o condenou ao menosprezo eterno da crítica literária. Sempre desconfiei que fomos um tanto injustos com Exupéry. Não tão injustos quanto o general Rafael Videla, que o proibiu na Argentina, durante a ditadura militar de 1976-1981, por considerá-lo cheio de ideias subversivas.
Na semana passada, um livro de cartas de amor trocadas entre Exupéry e a mulher, Consuelo, de 1930 a 1944, teve o condão de acabar com uma encarniçada disputa familiar pelo milionário patrimônio do escritor, trazendo Exupéry de volta ao noticiário.
Seu ressurgimento anterior se dera no início do milênio, quando o prefeito da cidade mexicana de Nezahualcoyotl causou espanto e inveja, fora do país inclusive, ao decretar que os policiais de sua jurisdição só ascenderiam de posto se lessem pelo menos um livro por mês. Luiz Sanchez, o prefeito iluminista, até listou um plano de leitura, que incluía Dom Quixote e obras de Octavio Paz, Juan Rulfo, Carlos Fuentes – mais O Pequeno Príncipe. Desconheço se e quão certo deu a experiência, mas me pergunto se algo similar implantado aqui teria alguma chance de, no mínimo, evitar futuras chacinas como a de Jacarezinho.
Mas voltemos à vacina Jobim, ao Antonio Brasileiro. No miolo do álbum, uma série de imagens que evocam natureza (elementos de flora, fauna e indígenas) e fotos de objetos pessoais do maestro: seu chapéu Panamá, óculos, piano, lente de aumento, um livro – a iconografia adequada para um disco que pretendia ser uma repassada na obra jobiniana e, inconscientemente, uma despedida.
Nele, Tom, que morreria no ano seguinte, retoma temas do passado (Insensatez , Só Danço Samba , Surfboard , Chora Coração), homenageia alguns de seus heróis (Radamés, Bandeira, Pelé), cerca-se de amigos e parceiros (Caymmi, Ron Carter, Sting) e estabelece um recorde de familiares à sua volta, acrescentando aos da Banda Nova o neto Daniel e a filha Maria Luiza.
Daniel, então com 21 anos, produziu o disco com seu pai, Paulo, e pilotou os teclados em duas faixas. Maria Luiza, ainda uma menina de sete anos, canta a duas vozes com o pai um samba inspirado no seu “cabelo amarelo” e nos seus “olhos cor de chuchu”, singelamente intitulado Samba Para Maria Luiza.
No repertório, uma dúzia de composições de Tom, dois originais de Caymmi (Maracangalha e Maricotinha), mais a versão (Blue Train) que Tom fez para Trem Azul, de Lô Borges e Ronaldo Bastos. Além do Samba para Maria Luiza, eram inéditos em disco, na interpretação de Tom, o cinematográfico Pato Preto, a telenovelística Querida (que nunca fora gravada por inteiro), o ecológico Forever Green, o carnavalesco Piano na Mangueira, o onomatopaico
Trem de Ferro (em cima do “café com pão, manteiga não” de Manuel Bandeira, antes só interpretado por Olivia Hime) e dois choros para “o amigo Radamés”.
Com o reforço de 13 instrumentos de cordas, seis metais, mais percussão, acabou resultando num dos discos mais instrumentais que Tom gravou no Brasil. E num sucesso póstumo, chancelado por um Disco de Ouro e um Grammy.
“Nesse tão variado e múltiplo
Antonio Brasileiro”, escreveu Caetano Veloso no press release do CD, “Jobim mostra acima de tudo sua generosidade. Os cuidados tímbricos e o bom gosto das linhas, assim como o imaginoso das composições, asseguram que o sol da nossa música está na potência total de sua luminosidade. Ele não nos dá apenas suas canções e seus sons. Ele prova ser excelente reprodutor biológico, trazendo ao mundo filhos e netos que por sua vez produzem boa música, inclusive junto com ele. É amor e talento. O amor de que o coração de Tom Jobim é o maior repositório: o amor pela música, pelos homens humanos e pela travessia do Brasil”. O Brasil que Bolsonaro não conseguirá, oxalá, destruir completamente.