O Estado de S. Paulo

Vacina contra HIV já está em teste no Brasil

Imunizante que está sendo avaliado em estudos de fase 3, inclusive no Brasil, é visto como o mais promissor em 40 anos de epidemia

- Roberta Jansen /

Visto como o mais promissor nos 40 anos da epidemia de aids, um novo imunizante conseguiu reduzir a infecção em 67% dos testes feitos com macacos e está sendo avaliado em estudos de fase 3. Ativista em prol da diversidad­e e pesquisado­r da UFRJ, Thauan Carvalho (foto)é um dos brasileiro­s que fazem parte do grupo de 3,6 mil voluntário­s de oito países. Ele tomou a primeira de quatro doses.

O desenvolvi­mento em tempo recorde de várias vacinas contra a covid-19 parece ter dado o impulso que faltava para a criação de um imunizante contra o HIV. Quarenta anos depois do início da pandemia de aids, o mundo parece estar perto de ter um produto eficaz na prevenção da infecção. Um estudo com mais de 6 mil pessoas está sendo conduzido em vários países da África, Europa, América do Norte e América Latina, inclusive no Brasil. Para especialis­tas, é o mais promissor em quatro décadas.

O estudo está dividido em duas frentes. A primeira delas, na África Subsaarian­a, testa 2.637 mulheres heterossex­uais. Uma segunda, chamada de Mosaico, conduzida na Europa, na América do Norte e na América Latina, está testando 3.600 voluntário­s, entre homens homossexua­is e pessoas trans. No Brasil, o estudo ocorre em oito centros de pesquisa em São Paulo, no Rio, em Minas e no Paraná.

A pesquisa está na fase 3, que testa a eficácia em larga escala. As fases 1 e 2, com menos voluntário­s, determinam a segurança do produto e a dose apropriada. Numa fase anterior, em macacos, o imunizante apresentou uma proteção de 67% contra a infecção. É por conta deste número que os cientistas estão otimistas. Até hoje, o candidato a vacina contra a aids mais eficaz já testado no mundo apresentav­a proteção de 30% – e sua pesquisa foi deixada de lado.

“Nas fases 1 e 2, a vacina se mostrou muito segura. Os efeitos colaterais são parecidos aos da Astrazenec­a contra a covid: dor local, febre por um dia, dor de cabeça”, afirma o infectolog­ista Ricardo Vasconcelo­s, coordenado­r da fase 3 no Hospital das Clínicas, em São Paulo. “A imunogenic­idade do produto, ou seja, o quanto ele conseguiu induzir uma resposta imune, foi considerad­a muito satisfatór­ia. Resta saber se essa resposta é capaz de reduzir a incidência da infecção.”

A vacina está sendo aplicada em pessoas soronegati­vas que tenham o risco aumentado de exposição à infecção. Os voluntário­s serão acompanhad­os por 30 meses. Metade receberá placebo e a outra metade, o imunizante. Cada um tomará quatro doses, com intervalos de três meses entre cada uma.

Mutações. A grande capacidade de mutação do vírus HIV – muito superior à do Sars-cov-2 – sempre foi o maior obstáculo para a criação de uma vacina eficaz. A tecnologia usada no novo imunizante é similar à da Astrazenec­a desenvolvi­da contra a covid-19. Um adenovírus inativado é usado como um ‘cavalo de Troia’ para levar fragmentos genéticos do HIV para dentro da pessoa a ser imunizada, “treinando” o seu sistema imunológic­o a combater o vírus real. A diferença é que, neste novo produto, estão sendo usados milhares de fragmentos genéticos.

“São muitos tipos diferentes de vírus circulando pelo mundo, a ideia é conseguir cobrir o maior número possível de variantes”, explica Vasconcelo­s. “(Essa pesquisa) se chama Mosaico porque reúne milhares de fragmentos de HIV.”

Mas, afinal, por que várias vacinas contra a covid foram desenvolvi­das em menos de um ano e ainda não se chegou a um imunizante contra o HIV? “A principal resposta é que são vírus diferentes. Não é porque chegamos rápido a uma vacina contra o coronavíru­s que poderemos chegar na mesma velocidade a um imunizante contra outro vírus”, pondera Vasconcelo­s. “Muitas pessoas pegaram covid e se curaram. Ninguém se curou da infecção pelo HIV. Ou seja, de partida, sabemos que é possível curar a covid. A resposta imune contra o HIV é muito menos eficaz.”

Por outro lado, a vacina da Astrazenec­a contra a covid-19 pode ser desenvolvi­da em menos de um ano porque a plataforma do adenovírus já tinha sido desenvolvi­da na Universida­de de Harvard, em 2015. Sem falar, é claro, do interesse político e do alto investimen­to financeiro. Agora, as plataforma­s de RNA mensageiro inéditas, criadas para a covid, podem facilitar, num futuro próximo, o surgimento de mais candidatos a imunizante contra a aids.

“Foram 40 anos de evolução nas pesquisas, houve várias tentativas, pelo menos seis estudos muito grandes”, diz o infectolog­ista Bernardo Porto Maia, coordenado­r da pesquisa Mosaico no Instituto de Infectolog­ia Emílio Ribas, em São Paulo. “Mas o HIV é um vírus com uma capacidade de mutação muito grande. A diversidad­e genética inviabiliz­ava a criação de uma vacina, sobretudo com as tecnologia­s antigas que tínhamos.”

Atualmente, 38 milhões de pessoas vivem com HIV no planeta, segundo a Organizaçã­o das Nações Unidas (ONU). Até hoje, pelo menos 33 milhões de pessoas morreram vítimas da infecção. Com a evolução nas técnicas de prevenção e nos tratamento­s, a mortalidad­e caiu de 1,7 milhão em 2004, no pico da epidemia, para 690 mil em 2019 – uma redução de 60%. A taxa de infecção também caiu. De 2,8 milhões de novas infecções ao ano em 1998 para 1,7 milhão em 2019, queda de 40%.

“Os avanços mais recentes, como a profilaxia pós-exposição, estão mudando o rumo da epidemia. A situação melhorou, mas é inaceitáve­l termos quase 700 mil mortes ao ano por uma doença que sabemos como prevenir e como tratar”, afirma Maia. “Nada melhor que a imunização em massa para combater uma pandemia.”

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WILTON JUNIOR/ESTADÃO
 ?? WILTON JUNIOR / ESTADÃO ?? Para combater doença e estigma. ‘Me senti muito feliz de poder ajudar’, diz Thauan Carvalho, de 26, voluntário do estudo
WILTON JUNIOR / ESTADÃO Para combater doença e estigma. ‘Me senti muito feliz de poder ajudar’, diz Thauan Carvalho, de 26, voluntário do estudo

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