O Estado de S. Paulo

Muito mais do que apenas desgoverno

- ANTONIO CARLOS PEREIRA / DIRETOR DE OPINIÃO

ÀNação é devida a responsabi­lidade de todos os que transforma­ram o que seria uma grave crise sanitária no maior morticínio já visto por muitas gerações.

ACPI da Pandemia convidou um grupo de juristas para estudar quais crimes podem ser imputados ao presidente Jair Bolsonaro por suas ações e omissões na condução do País durante a emergência sanitária. A rigor, o principal trabalho deste grupo de notáveis será dar um enquadrame­nto jurídico-penal ao sobejament­e conhecido comportame­nto de Bolsonaro como chefe de Estado e de governo no curso da maior tragédia que se abateu sobre a Nação em mais de um século.

É evidente que o Brasil não seria o único país do mundo a ser poupado dos efeitos devastador­es de uma pandemia como a que ora aflige todos, mas tampouco mais de meio milhão de mortos representa­m o que seria o “curso natural” da peste entre nós. Houve esforços para que se chegasse a este funesto resultado.

“Precisamos de uma avaliação jurídica mais aprofundad­a sobre o enquadrame­nto típico da conduta do presidente da República”, afirmou o senador Alessandro Vieira (Cidadania-se), autor do requerimen­to de formação do grupo. “Até tenho minha opinião sobre os tipos legais que se aplicam, mas é oportuno buscar um respaldo maior.”

O grupo de juristas, coordenado por Miguel Reale Júnior, ex-ministro da Justiça e professor titular de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universida­de de São Paulo

(USP), é composto pelos advogados Helena Lobo da Costa e Alexandre Wunderlich, além da juíza Sylvia Steiner, que integrou o Tribunal Penal Internacio­nal. Os advogados Salo de Carvalho e Davi Tangerino deixaram o grupo por “conflito de interesses”.

Há que esperar a conclusão do trabalho do grupo, mas Reale Júnior vê como inescapáve­l considerar no relatório final o “conjunto da obra negacionis­ta” de Bolsonaro, o que poderá lhe valer tanto a imputação de crimes comuns como os de responsabi­lidade.

A natureza do trabalho do grupo não é essencialm­ente diferente do escopo da própria CPI. Os senadores estão menos atarefados em desvendar o descalabro que é a administra­ção federal da crise do que em sistematiz­ar a miríade de condutas irresponsá­veis – muitas delas, de fato, potencialm­ente criminosas – cometidas pelo presidente da República e seus auxiliares à luz do dia, reiteradam­ente, há 1 ano e 4 meses.

Já é conhecida, por exemplo, a deliberada recusa do governo em firmar contratos para aquisição de vacinas. Igualmente, é sabido que Bolsonaro age como o principal garoto-propaganda de medicament­os que não só são ineficazes contra a covid-19, como podem causar terríveis efeitos colaterais, e até a morte, quando usados fora de suas indicações terapêutic­as. Também é de conhecimen­to público a ofensiva de Bolsonaro, inclusive acionando o Supremo Tribunal Federal (STF), para barrar quaisquer iniciativa­s de governador­es e prefeitos para conter o avanço do vírus em seus Estados e municípios.

Bolsonaro também não perde oportunida­de de desinforma­r a população, expondo-a a perigo, e de sabotar medidas de proteção individual e coletiva preconizad­as pela comunidade científica. Tudo isto certamente há de configurar muito mais do que apenas desgoverno, o que por si só já seria o bastante para reservar a Jair Messias Bolsonaro o lugar mais escuro do porão da História nacional.

Os juristas já começaram a analisar documentos, declaraçõe­s, leis, atos normativos e administra­tivos emitidos pelo governo federal durante a pandemia. Ao final do trabalho, o grupo entregará o parecer que subsidiará o relatório final do senador Renan Calheiros (MDB-AL).

À Nação é devida a responsabi­lização de todos os que transforma­ram o que seria uma grave crise sanitária no maior morticínio já visto por muitas gerações. O trabalho da CPI é apenas uma etapa neste processo, a investigaç­ão. Mas fundamenta­is também são os papéis do Ministério Público e do Poder Judiciário para denunciar, processar e julgar quem quer que tenha agido contra a saúde e a vida dos brasileiro­s. Não há lugar para omissões.

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