Muito mais do que apenas desgoverno
ÀNação é devida a responsabilidade de todos os que transformaram o que seria uma grave crise sanitária no maior morticínio já visto por muitas gerações.
ACPI da Pandemia convidou um grupo de juristas para estudar quais crimes podem ser imputados ao presidente Jair Bolsonaro por suas ações e omissões na condução do País durante a emergência sanitária. A rigor, o principal trabalho deste grupo de notáveis será dar um enquadramento jurídico-penal ao sobejamente conhecido comportamento de Bolsonaro como chefe de Estado e de governo no curso da maior tragédia que se abateu sobre a Nação em mais de um século.
É evidente que o Brasil não seria o único país do mundo a ser poupado dos efeitos devastadores de uma pandemia como a que ora aflige todos, mas tampouco mais de meio milhão de mortos representam o que seria o “curso natural” da peste entre nós. Houve esforços para que se chegasse a este funesto resultado.
“Precisamos de uma avaliação jurídica mais aprofundada sobre o enquadramento típico da conduta do presidente da República”, afirmou o senador Alessandro Vieira (Cidadania-se), autor do requerimento de formação do grupo. “Até tenho minha opinião sobre os tipos legais que se aplicam, mas é oportuno buscar um respaldo maior.”
O grupo de juristas, coordenado por Miguel Reale Júnior, ex-ministro da Justiça e professor titular de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
(USP), é composto pelos advogados Helena Lobo da Costa e Alexandre Wunderlich, além da juíza Sylvia Steiner, que integrou o Tribunal Penal Internacional. Os advogados Salo de Carvalho e Davi Tangerino deixaram o grupo por “conflito de interesses”.
Há que esperar a conclusão do trabalho do grupo, mas Reale Júnior vê como inescapável considerar no relatório final o “conjunto da obra negacionista” de Bolsonaro, o que poderá lhe valer tanto a imputação de crimes comuns como os de responsabilidade.
A natureza do trabalho do grupo não é essencialmente diferente do escopo da própria CPI. Os senadores estão menos atarefados em desvendar o descalabro que é a administração federal da crise do que em sistematizar a miríade de condutas irresponsáveis – muitas delas, de fato, potencialmente criminosas – cometidas pelo presidente da República e seus auxiliares à luz do dia, reiteradamente, há 1 ano e 4 meses.
Já é conhecida, por exemplo, a deliberada recusa do governo em firmar contratos para aquisição de vacinas. Igualmente, é sabido que Bolsonaro age como o principal garoto-propaganda de medicamentos que não só são ineficazes contra a covid-19, como podem causar terríveis efeitos colaterais, e até a morte, quando usados fora de suas indicações terapêuticas. Também é de conhecimento público a ofensiva de Bolsonaro, inclusive acionando o Supremo Tribunal Federal (STF), para barrar quaisquer iniciativas de governadores e prefeitos para conter o avanço do vírus em seus Estados e municípios.
Bolsonaro também não perde oportunidade de desinformar a população, expondo-a a perigo, e de sabotar medidas de proteção individual e coletiva preconizadas pela comunidade científica. Tudo isto certamente há de configurar muito mais do que apenas desgoverno, o que por si só já seria o bastante para reservar a Jair Messias Bolsonaro o lugar mais escuro do porão da História nacional.
Os juristas já começaram a analisar documentos, declarações, leis, atos normativos e administrativos emitidos pelo governo federal durante a pandemia. Ao final do trabalho, o grupo entregará o parecer que subsidiará o relatório final do senador Renan Calheiros (MDB-AL).
À Nação é devida a responsabilização de todos os que transformaram o que seria uma grave crise sanitária no maior morticínio já visto por muitas gerações. O trabalho da CPI é apenas uma etapa neste processo, a investigação. Mas fundamentais também são os papéis do Ministério Público e do Poder Judiciário para denunciar, processar e julgar quem quer que tenha agido contra a saúde e a vida dos brasileiros. Não há lugar para omissões.