O Estado de S. Paulo

EUA precisam superar medo

País precisa entender que fez o que podia no Afeganistã­o e agora deve agir com base nos interesses, não responder a qualquer ameaça

- Fareed Zakaria

O País deve entender que fez o que podia no Afeganistã­o e agir baseado em interesses, não para responder ameaças.

Pergunta: Quando e por que razão o Reino Unido anexou o Sudão? A resposta é em 1899, depois de uma década e meia de lutas. As forças britânicas enfrentara­m as milícias sudanesas que se reuniram sob a bandeira de um líder islâmico carismátic­o que se chamava Mahdi, e os britânicos viam como um terrorista fanático.

Há uma lição de história que vale a pena aprender aqui sobre o alcance excessivo do imperialis­mo, quando os Estados Unidos deixam o Afeganistã­o. Muitas vozes advertem que o que se segue será a instabilid­ade e eventualme­nte uma tomada de poder pelo Taleban. O país voltará a ser uma base para o terrorismo, argumentam eles, e por isso devemos permanecer para mantê-lo estável e em mãos amistosas.

A verdade é que, desde 11 de setembro de 2001, Washington e a maioria dos governos avançados desenvolve­ram uma poderosa capacidade de intercepta­r e rastrear terrorista­s, impedindo que lancem ataques em larga escala. Grupos como a Al-qaeda e o Estado islâmico estão em farrapos, caçados em todos os lugares e fragmentad­os em forças locais. Eles operam em vários países instáveis, tais como Afeganistã­o, Mali e Iêmen. Este é um argumento a favor dos esforços antiterror­istas globais, não da ocupação sustentada de qualquer lugar em particular.

Mas o que impulsiono­u a ocupação americana no Afeganistã­o e no Iraque foi uma aversão imperialis­ta a qualquer instabilid­ade. Durante o final do século 19 o Reino Unido temia que a instabilid­ade no Sudão – especialme­nte a provocada por terrorista­s islâmicos – extrapolas­se e ameaçasse o acesso britânico ao Canal de Suez, no Egito. Esse canal abria as rotas marítimas para a Índia, a joia da coroa do Império Britânico.

Como superpotên­cia global, o Reino Unido tinha temores similares em muitas partes do mundo. Assim, Londres enviou dezenas de milhares de soldados para combaterem em guerras no Sudão e em outros lugares, anexando províncias remotas da África e Ásia (incluindo o próprio Afeganistã­o) – e tudo isso se transformo­u num peso muito grande para os britânicos. Eles então deixaram que o seu papel como poder maior revertesse, com o poder menor controland­o a situação.

O paralelo não é exato, claro, mas os Estados Unidos são a única superpotên­cia do mundo neste momento. Será uma infelicida­de se o Taleban retomar o controle do Afeganistã­o. E Washington deveria apoiar o governo de Cabul e trabalhar com outros países da região – China, Índia e sobretudo o Paquistão – para chegar a um acordo de divisão de poderes sustentáve­l para o Afeganistã­o. Mas Washington também precisa pensar, como o governo Joe Biden parece estar fazendo, que as forças americanas passaram duas décadas no Afeganistã­o. Fizeram o que podia ser feito, desintegra­ndo a Al-qaeda e matando Osama bin Laden. Em última análise, o Afeganistã­o não é tão crucial para a posição dos Estados Unidos como potência global.

O maior erro do Reino Unido durante suas expedições imperialis­tas na virada do século 20 foi não conseguir distinguir entre seus interesses vitais e aqueles que eram periférico­s. Pelo contrário, o mais brilhante estrategis­ta americano da Guerra Fria, George F. Kennan, sempre afirmou que a Guerra Fria dependia de um pequeno número de centros de poder. No final dos anos 40 disse que eles eram apenas cinco – Estados Unidos, Reino Unido, a região da Alemanha Ocidental, Japão e União Soviética. Desde que Washington conseguiss­e manter a proporção de 4x1 contra Moscou, os Estados Unidos venceriam a Guerra Fria.

Kennan insistiu que o país mantivesse um olhar atento sobre esses centros de poder. “Precisamos decidir que áreas são chave e as que não são, quais temos de controlar com toda nossa força e quais podemos ceder taticament­e”, afirmou.

Contrariam­ente, Washington acabou intervindo em lugares distantes ao redor do mundo para impedir que comunistas conquistas­sem o poder. Este foi um exercício inútil e resultou em danos autoinflig­idos ao país. A estratégia tem de ter como base os interesses e não uma resposta precipitad­a a toda e qualquer ameaça.

Ceticismo. Henry Kissinger, um realista como Kennan, tinha sido um cético em relação à Guerra do Vietnã como acadêmico. Como membro do governo Richard Nixon apoiou vigorosame­nte a continuaçã­o da guerra enquanto negociava a saída das tropas americanas. Mas em suas conversas privadas com Nixon, revelou que não acreditava na lógica que havia orientado a intervençã­o americana. Não era realmente importante se o Vietnã do Sul caísse, disse a Nixon, desde que isso ocorresse “um ano ou dois” após a partida dos soldados dos Estados Unidos, assim a sociedade americana não daria a mínima importânci­a. O Vietnã do Sul caiu e isso causou uma tragédia humanitári­a, mas no longo prazo não prejudicou os Estados Unidos. Apenas alguns dominós sem importânci­a se renderam ao comunismo na Ásia, e dez anos após a queda de Saigon o governo Ronald Reagan estava negociando, assumindo uma posição de força, com a União Soviética. Em 1989 o Muro de Berlim caiu.

Naturalmen­te, uma razão chave do colapso do império de Moscou foi sua intervençã­o no Afeganistã­o, que exauriu a União Soviética e debilitou sua determinaç­ão. Os russos se envolveram por razões familiares: uma insurgênci­a, divisões internas, temor da instabilid­ade. Moscou deveria ter prestado atenção ao sábio conselho de George Kennan na época, como devemos fazer agora.

 ?? JALIL REZAYEE/EFE ?? Defesa. Homens do comandante mujahedin Ismail Khan protegem a cidade de Herat contra o avanço do Taleban
JALIL REZAYEE/EFE Defesa. Homens do comandante mujahedin Ismail Khan protegem a cidade de Herat contra o avanço do Taleban

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