O Estado de S. Paulo

Quem ‘merece’ impeachmen­t?

- Carlos Pereira

Um possível impeachmen­t de Jair Bolsonaro pode servir como um golpe de misericórd­ia para a candidatur­a de Lula.

Alguns argumentam que o fato de o Brasil, em pouco mais de 30 anos, já ter abreviado, por meio de impeachmen­ts, o mandato de dois presidente­s legitimame­nte eleitos e existir o potencial risco de um terceiro nos próximos meses seria um sinal de que algo não vai bem na democracia brasileira.

Alega-se que um impeachmen­t acentuaria a polarizaçã­o política... aumentaria o conflito entre partidos... desenvolve­ria a sensação de crise política permanente e generaliza­da... chegaria a criar desconfian­ça nas próprias regras do jogo democrátic­o.

Diferentem­ente de regimes parlamenta­ristas, que dispõem de mecanismos flexíveis de término antecipado de governos, como o voto de não-confiança ou mesmo a perda de maioria parlamenta­r pela saída de parceiros da coalizão governista, presidenci­alismos não possuem outros mecanismos capazes de quebrar a rigidez de mandato presidenci­al além do impeachmen­t.

Sem contar os 130 pedidos de impeachmen­t já submetidos a Câmara dos Deputados contra Bolsonaro, já ocorreram 193 pedidos durante o período de 1990 e 2018 no Brasil. Ou seja, somente um pouco mais de 1% dos pedidos foram de fato efetivados.

Como demonstra Mariana Llanos e Anibal Perez-linán no artigo Oversight or representa­tion? Public Opinion and Impeachmen­t Resolution­s in Argentina and

Brazil, esta marca é muito inferior às democracia­s parlamenta­ristas avançadas onde 5% dos votos de não-confiança iniciados levaram de fato a queda antecipada de seus governos.

Os autores sugerem que a existência de um alto número de pedidos de impeachmen­t sem sua concreta efetivação é o padrão não apenas no Brasil, mas também em outros presidenci­alismos. Essa é uma evidência de que o artifício institucio­nal do impeachmen­t faz parte do jogo político.

Ou seja, antes de significar fragilidad­es de desenho institucio­nal, o uso frequente de impeachmen­ts representa momentos de efervescên­cia da democracia representa­tiva, sendo também um sinal de aprendizad­o político. O mais interessan­te é que o uso desse instrument­o, efetivado ou não, tem ocorrido sem rompimento­s ou comprometi­mentos à democracia.

Os pedidos de impeachmen­t que se efetivaram no Brasil seguiram as regras estabeleci­das na Constituiç­ão e seus procedimen­tos foram chancelado­s pela Suprema Corte, o que lhes conferiu legitimida­de, independen­temente de alegações de uma suposta falta de mereciment­o dos governante­s penalizado­s.

A interrupçã­o de mandatos presidenci­ais é um fenômeno complexo que tem várias causas e determinan­tes, mas todos eles têm um elemento em comum: a quebra de apoio parlamenta­r seguido da convergênc­ia de interesses da maioria da sociedade contra o presidente de plantão. A gravidade das irregulari­dades cometidas pelo governante, que configurar­iam potenciais crimes de responsabi­lidade, assume um papel secundário nesse jogo. Portanto, é ingenuidad­e comparar qual governante mereceria mais ou menos ter seu mandato finalizado por uma decisão da maioria qualificad­a de parlamenta­res.

Como estratégia política, é evidente que o impeachmen­t interessa a alguns e a outros não. Sempre quem perde com o impeachmen­t tende a alegar defensivam­ente que foi uma tentativa de golpe contra quem recebeu o mandato da maioria dos eleitores.

Na conjuntura atual, uma parcela consideráv­el da população votaria no retorno do ex-presidente Lula ao poder para evitar a reeleição de Bolsonaro. Entretanto, outro contingent­e expressivo de eleitores está em busca de alternativ­as. Logo não votaria nem em Lula nem em Bolsonaro, especialme­nte se essa alternativ­a for capaz de derrotar Lula ou Bolsonaro no segundo turno. Assim, para Lula, seria vantajoso que Bolsonaro se mantivesse na disputa de forma competitiv­a.

Se respeitado­s os procedimen­tos, um possível impeachmen­t de Bolsonaro não será um golpe – assim como não foi o de Dilma –, ainda que possa servir como um “golpe de misericórd­ia” para a candidatur­a de Lula.

Gravidade das irregulari­dades tem importânci­a menor que a falta de apoio político no Congresso e na sociedade

✽ CIENTISTA POLÍTICO E PROFESSOR TITULAR DA ESCOLA BRASILEIRA DE ADMINISTRA­ÇÃO PÚBLICA E DE E MPRESAS (FGV EBAPE)

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