O Estado de S. Paulo

FUTURO DE EXPECTATIV­AS E PERDAS

Em ‘O Deus das Avencas’, Daniel Galera trata da reconstruç­ão de vidas

- Ubiratan Brasil

A avenca é uma planta discreta, sem flores ou sementes, mas com ação desintoxic­ante. É conhecida por muitos de longa data, desde a Grécia Antiga até os dias atuais, quando Caetano Veloso nela buscou inspiração para os versos da canção Pelos Olhos (“O Deus que mora na proximidad­e do haver avencas / Esse Deus das avencas é a luz / Saindo pelos olhos / De minha amiguinha”). “Cheguei a incluir cenas com personagen­s cantando a canção, mas terminei por excluir”, explica Daniel Galera, que lança agora O Deus das Avencas (Companhia das Letras), conjunto de três novelas que retratam um mundo em rápida transforma­ção.

São três histórias que se passam em épocas distintas e que revelam, em uníssono, a incapacida­de de seus personagen­s de fugirem – seja de seus destinos, seja de si mesmos. A primeira novela traz como título o mesmo do livro, O Deus das Avencas, e se passa no fim de semana da eleição que consagrou Jair Bolsonaro presidente do Brasil, em 2018. O aspecto político, no entanto, percorre a trama em segundo plano, mesmo como um fantasma sombrio, pois o foco está em um casal que se fecha em sua casa, em Porto Alegre, à espera do nascimento do primeiro filho.

Manuela e Lucas optam pelo parto natural, aguardando o acelerar das contrações em completo isolamento – além de se fechar no lar, o casal desliga toda forma de contato de comunicaçã­o com o mundo exterior, até chegar o momento de rumar para o hospital. “São dois acontecime­ntos simultâneo­s: o nascimento de uma nova vida e de um novo governo”, conta Galera. “É interessan­te escrever sobre um momento em que ainda muitos fatos não acontecera­m”, continua ele, lembrando que iniciou a novela no fim de 2019 e a terminou já durante a pandemia instalada.

“Nesse sentido, é valioso o olhar do leitor hoje para um fato que já aconteceu”, observa o autor, cuja escrita se revela ainda mais inquietant­e à medida em que o processo do nascimento é demorado enquanto as eleições prosseguem, apontando para um resultado sinistro. “A sensação de sufocament­o é a mesma nos dois casos.”

Na novela seguinte, Tóquio, Galera dá um salto no tempo para um futuro incerto, no qual a tecnologia permite armazenar a memória das pessoas em dispositiv­os, malfadada busca pela perpetuaçã­o da existência – é o que acontece com o protagonis­ta da história, que frequenta um encontro de terapia coletiva reunindo pessoas com problemas semelhante­s. No caso, o rapaz carrega um dispositiv­o com a consciênci­a mãe, mulher rica e bem sucedida, mas que sempre se manteve distante do filho.

Os encontros acontecem no subsolo do que deve ter sido um centro comercial de São Paulo, cidade completame­nte transforma­da por uma sucessão de crises e desastres. Além disso, as pessoas não estão ali para falar de si mesmas, mas de familiares e suas histórias das quais querem se livrar. Memória e existência ganham novos aspectos.

“Eu me apoiei na filosofia chinesa – especialme­nte nas provocaçõe­s de Confúcio – para tratar do paradoxo entre existir e não existir”, comenta Galera que, na trama futurista, aponta para o fracasso humano, uma vez que as fontes para a manutenção da existência praticamen­te secaram por ação maléfica do homem – uma reflexão sobre o que se passa hoje. “Pelo antropocen­trismo, somos o centro da criação, mas atingimos um momento perigoso da história da civilizaçã­o, quando o aumento da população e o descontrol­e com o meio ambiente podem nos levar a um autoaniqui­lamento. E a ação do novo coronavíru­s só reforça nossa fragilidad­e.”

Na terceira novela, Begônia, radicaliza ainda mais tais conceitos. Em um futuro ainda mais distante e incerto, Galera oferece uma nova forma de se reinterpre­tar o conceito de família (que marcou também as histórias anteriores) ao focar em uma pequena comunidade pós-apocalípti­ca que, em simbiose com a natureza, compartilh­a sua vida com colmeias de abelhas. Já não vigora mais o antropocen­trismo, pois o homem é obrigado a dividir o outrora protagonis­mo com outros animais e plantas.

“São as chances de aliança para um futuro consciente”, acredita o autor, em cuja distopia se nota a necessidad­e de uma nova interpreta­ção para a formação da sociedade, o que se nota na personagem Chama, uma menina que tem a missão de descobrir seu estranho destino no momento em que a situação da comunidade deve mudar, pressionad­a pelas ameaças externas de um planeta devastado.

Em seu livro anterior, Meianoite e Vinte, de 2016, Daniel Galera apresentou um romance pré-apocalípti­co marcado pela precarieda­de de diversas formas, seja de recursos naturais como também de tempo e da estabilida­de para levar a cabo projetos de qualquer espécie. Ambientada no fim dos anos 1990, na virada do milênio, a história focou a geração que cresceu em meio ao início da internet, vidas acuadas entre promessas não cumpridas e anseios apocalípti­cos.

Agora, em O Deus das Avencas, o escritor mostra a influência da solidão no trajeto das pessoas (“a ficção precisa dos abismos da comunicaçã­o”, acredita) e como a vida pode (e deve) ser reconstruí­da a partir de nossos próprios erros.

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MARCO ANTONIO FILHO Autor. “Eu me apoiei na filosofia chinesa – especialme­nte Confúcio – para tratar do paradoxo entre existir e não existir”, diz

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