O Estado de S. Paulo

VELHAS DORES DO DESENHISTA OTTO GUERRA

Aos 65 anos, artista lança a autobiogra­fia ‘Nem Doeu’, que deverá inspirar também um longa-metragem

- Rodrigo Fonseca ESPECIAL PARA O ESTADÃO

Além de trazer saborosos causos frutos de um modo irreverent­e de viver e de funcionar como um seminal resgate da história da animação no Brasil, Nem Doeu, a autobiogra­fia de Otto Guerra lançada pela editora Mmarte e subtitulad­a por ele mesmo de Autopornog­rafia, é um estudo sobre como ser “álcooldida­ta” no cinema latinoamer­icano.

Aos 65 anos, o realizador de Wood & Stock – Sexo, Orégano & Rock’n’roll (2006) resolveu abrir o baú das memórias – “Fiz antes de a bebida levar todos os meus neurônios”, confessa – em forma de um livro de recordaçõe­s e digressões. Gaúcho de Porto Alegre, nascido em 1956, ele dá o tom jocoso de suas andanças pela vida já na epígrafe, em que usou uma frase do diretor Domingos de Oliveira (19352019): “O humor é a única forma de falar sério da vida”.

Não por acaso, o texto tem ironia mesmo nos parágrafos iniciais: “No caminho entre a sala de parto e o depósito de recém-nascidos, quase ninguém percebeu quando o robusto bebê pegou o prontuário, uma caneta Bic e, ali mesmo, desenhou um pequeno pônei em cujo lombo escreveu, de forma torta, SOS”, escreve Otto, falando de sua origem.

“Quando vi o primeiro álbum do Tintin, eu tinha 13 anos e me deu uma coisa: ‘Putz, o cara está publicando desenhos’. Era uma revista europeia, que encontrei por acaso e vi que era possível viver de quadrinhos. Apostei nisso, mas não era fácil fazer isso em Porto Alegre. E ainda não é. Era uma encrenca conseguir dinheiro com quadrinhos, ainda mais na década de 1970. Então, migrei para fazer filmes para propaganda. Vendi a minha alma ao diabo, porque propaganda deveria ser crime inafiançáv­el”, conta Otto ao Estadão, anunciando já o projeto de fazer uma adaptação dessas suas recordaçõe­s para o cinema.

Nelas, vão alguns problemas da juventude e a luta recente contra um tumor, que ele já abordou no longa A Cidade dos Piratas (2018), ao mesclar sua própria vivência com tiras de quadrinhos da cartunista Laerte. “Tive a sorte de desenhar desde criança

‘VENDI MINHA ALMA AO DIABO, PROPAGANDA DEVERIA SER CRIME INAFIANÇÁV­EL’

e não tinha muita escolha sobre esse fato. Adorava – meu mundo era dentro dos quadrinhos e das histórias. A minha expectativ­a era contar histórias, fazer filmes e HQS. E isso era uma coisa que perturbava muito a minha família”, conta o cineasta, que se destacou no cenário dos festivais de cinema a partir dos curtas O Natal do Burrinho (1984), Treiler (1986) e Novela (1992).

“O padrão para minha família era ser médico, advogado, engenheiro. Meu irmão é médico. Quando fiz um comercial para a Coca-cola, ganhei muito mais grana que ele e minha mãe disse: ‘Meu filho é um gênio!’. Antes eu era o pior, era a ovelha negra. Esses padrões da nossa civilizaçã­o de dinheiro estão ferrando com tudo. Não que eu não goste de dinheiro, mas não é o objetivo, que é fazer filmes. O (escritor americano Henry David) Thoreau, pré anarquista, já falava: ‘O momento em que o dinheiro vira o objetivo da vida de uma pessoa, essa pessoa está perdida’. Não foi meu caso, faria tudo de novo, do mesmo jeito”, comenta.

A agenda de Otto para o futuro anda movimentad­a, pois tem dois longas aprovados para desenvolve­r. Um atende pelo provocativ­o nome Filho da P.... “É um longa sobre um menino no sertão de Minas. Conta a história de um garoto que é filho da prostituta mais famosa da região e as agruras disso. Ele sai em busca do pai na trama”, conta o diretor, que já produz o primeiro longa infantil de sua Otto Desenhos, chamado Joe e o Vale Vazio. “É sobre uma menina que salva um príncipe. É uma espécie de A História Sem Fim da gente.”

Mas, no passado, o realizador passou por duras situações que são revividas nas 132 páginas de Nem Doeu, com ilustraçõe­s de Marco Pilar. “Eu revelava os filmes, na década de 1980, em São Paulo, no laboratóri­o Líder. Aproveitei uma viagem e levei uma fita com o primeiro curta que eu havia feito, O Natal do Burrinho, para Mauricio de Sousa. Ele não me recebeu porque eu deveria ter marcado hora. Fui ao banheiro e chegou um cara do meu lado. Era o próprio Mauricio de Sousa. Nesse momento, entrei em pânico e fiquei feliz. Ali mesmo, eu disse: ‘Oi! Sou de Porto Alegre’. Mauricio perguntou o que eu queria. Eu tinha uma cara de 12 anos naquele momento, olhei para ele e disse: ‘Faço desenho animado em Porto Alegre e trouxe um filme’. Ele respondeu: ‘Desenho animado! Então vem comigo’. Ele me levou para a sua sala e, depois, a gente fez um longa dos Trapalhões, que ele produziu, mais uma série da Mônica”, conta Otto.

As situações descritas em Nem Doeu são a cartografi­a de um artista cuja vida pessoal e a atividade em uma produtora se misturam. “No livro, afirmo que o estúdio não passa da continuaçã­o do meu quarto de infância, contando histórias, escrevendo e desenhando quadrinhos”, diz Otto, lembrando de tempos difíceis. “Desanimei bastante nos anos 1990, quando fiz muito comercial – foram cerca de 600. Meu desenho ficou pasteuriza­do e parei. Com os editais, a situação voltou a se aquecer e nosso cinema disparou. Embalamos com Wood & Stock e não paramos mais. Estou gostando de trabalhar no roteiro do longa baseado no Nem Doeu e voltei até a desenhar.”

‘O ESTÚDIO NÃO PASSA DE UMA CONTINUAÇíO DO MEU QUARTO DE INFÂNCIA’

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ARQUIVO PESSOAL Memórias. Otto com seu livro e em cartum criado para a obra: desejo de trabalhar com desenho desde a infância
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