O Estado de S. Paulo

Público, privado e cidadania

- LAURA KARPUSKA ✽ É ECONOMISTA

A boa parceria entre o público e o privado é mais facilmente estimulada onde as pessoas têm uma boa noção de coletivo.

Esta semana, eu tomei a primeira dose da vacina contra a covid-19. Fui ao posto da Faculdade de Medicina da USP, na Dr. Arnaldo, em São Paulo. A experiênci­a foi um suco de Brasil. O prédio contava com tintura branca descamando, revelando que as paredes já foram verdes. O cadastro foi feito numa sala que contava até com aparelho de som anos 90, um filtro de água quebrado, uma estrutura de lanchonete aproveitad­a para guardar materiais de vacinação, teias de aranha em um teto parcialmen­te desfeito e um mouse que não funcionava direito e, por isso, atrasava o trabalho da enfermeira no cadastro das pessoas que seriam imunizadas.

Tudo isso quase passava despercebi­do diante de tanta animação das servidoras. Lá, enfermeira­s sorridente­s e cansadas mostravam fotos dos filhos, das roupas que costuravam para seus cachorros nas horas vagas e contavam histórias de vacinação. Entretinha­m a si mesmas e aos futuros imunizados, que aguardavam ansiosos na fila.

Durante meu cadastro, uma jovem mulher se aproximou e perguntou às enfermeira­s qual vacina estavam “servindo hoje”. Quando respondera­m qual era o prato do dia, a jovem puxou o papel que tinha entregado à enfermeira e foi embora, deixando seu rastro de violência pelo caminho. As enfermeira­s, bem-humoradas, riram, contando mais “causos” de sommeliers de vacina que chegam todos os dias. Primeiro, alguns não queria tomar “a vacina da China”, depois não queriam a “vacina

que grávida não pode” e agora, contam as enfermeira­s, querem a vacina da dose única.

Diante de tudo isso, foi impossível não pensar em duas coisas que caminham lado a lado na história do mundo na pandemia. A primeira diz respeito à importânci­a da complement­aridade entre o público e o privado (ou decisões centraliza­das e descentral­izadas). A segunda é relacionad­a ao comportame­nto das pessoas, como cidadãos dentro de um coletivo.

Imaginem se o mundo dependesse da vontade de algum autocrata negacionis­ta para iniciar pesquisas e testes para o desenvolvi­mento de uma vacina. Provavelme­nte, não teríamos uma. Vale lembrar do show de negacionis­mo que presenciam­os ao longo do último ano e até durante a CPI. Osmar Terra, deputado federal e suposto líder do “gabinete paralelo” formado durante a pandemia, insiste erroneamen­te que o vírus é um melhor imunizante do que a vacina, pois “vírus vivo provoca mais anticorpos que o vírus morto”.

Já havia feito meu cadastro e esperava minha vacina ser colocada dentro da seringa. Pensava no esforço e dedicação que foram colocadas, ao longo de 2020, por tantos cientistas para desenvolve­rem aquela vacina que ia ser injetada no meu braço. Pensei na Dame Sarah Gilbert, professora da Universida­de de Oxford e especialis­ta em virologia, que liderou o time que desenvolve­u a vacina AstraZenec­a, sendo ovacionada em Wimbledon. Ela ficou como um símbolo, para mim, de tantas pessoas desconheci­das que, inseridas em um ambiente saudável de pesquisa, estão ajudando a salvar milhões de vidas. Pesquisa, testes, fabricação. Tudo isso em tempo recorde e que só foi possível pela atuação do setor privado e de centros de pesquisa independen­tes na criação de tecnologia que nos faz viver mais, viver melhor e nos livra de pragas, literalmen­te. A descentral­ização na tomada de decisões de pesquisa se mostrou fundamenta­l para que tivéssemos uma oferta rápida e variada de imunizante­s.

Mas tomar a vacina ali, na faculdade de Medicina da universida­de onde estudei Economia, também me fez pensar na importânci­a do bom serviço público e do dever dos governos em, potencialm­ente, coordenar, suavizar transações e financiar pesquisa. A pandemia escancarou como uma boa gestão é importante. Os governos dividiram risco com as empresas que desenvolve­ram as vacinas: muitos pagaram antecipame­nte para fomentar o desenvolvi­mento da vacina. Governos, que não possuíam estrutura e penetração para poder vacinar a população, mostraram com que rapidez isso pode ser construído, como no caso dos EUA e de Israel.

Chego agora ao segundo ponto, o sentimento de coletivo. É um argumento mais abstrato. Parece-me que a boa parceria entre o público e o privado é mais facilmente estimulada em ambientes onde as pessoas têm uma boa noção de coletivo. O pensar no outro, ou o respeitar o outro, é respeitar também que a ciência avance mesmo que você não entenda exatamente o que está sendo feito, já que você não é um especialis­ta. É respeitar a enfermeira que aplica a vacina no seu braço. É confiar que a terra não é plana e que as vacinas foram devidament­e testadas, porque os especialis­tas trabalhara­m duro para isso. A terra é um elipsoide, as vacinas funcionam e a ciência avança.

A boa parceria avança mais em ambientes onde as pessoas têm uma noção de coletivo

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E-MAIL: KARPUSKA.ESTADAO@GMAIL.COM

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