O Estado de S. Paulo

Codicilo – defina seus últimos desejos antes que seja tarde

- ✽ Ivone Zeger ✽ ADVOGADA ESPECIALIS­TA EM DIREITO DE FAMÍLIA E SUCESSÕES, É AUTORA DAS OBRAS ‘FAMÍLIA PERGUNTAS E RESPOSTAS’, ‘HERANÇA PERGUNTAS E RESPOSTAS’ E ‘DIREITO LGBTI PERGUNTAS E RESPOSTAS’ (MESCLA EDITORIAL) E-MAIL: IVONE@ZEGER.COM.BR

Você sabe o que é mistanásia? Significa “morte infeliz, miserável e evitável”, um contexto que ocorre em países onde há desigualda­de social, como no Brasil. A palavra e o que ela significa pareciam longe da realidade de muita gente. Na atualidade, entretanto, expressa a condição de todos os cidadãos, sem distinção de classe social. Não há para onde correr. A pandemia causada pelo coronavíru­s chegou a tal magnitude que levou ao colapso do atendiment­o em hospitais públicos e privados, onde se chegou a verificar a ocupação de leitos de UTI ultrapassa­ndo os 90% e a falta de remédios, equipament­os e profission­ais capacitado­s. São Paulo, o Estado mais rico e populoso, foi o epicentro da covid-19 no Brasil em seu momento mais grave.

A crise sanitária provocada pela covid-19 é mundial e abala alicerces em todos os âmbitos da vida. O cuidar de si tornou-se exigência inadiável, tendo em vista a própria saúde e a dos demais. Basta se pôr por um minuto no lugar de um paciente de covid-19 que esteja consciente, em casa ou num leito hospitalar, para imaginar as muitas preocupaçõ­es. Uma delas, sem dúvida, é o pensamento acerca do destino que terão suas relíquias pessoais, sentimenta­is. Devem rondar na cabeça os desejos que não foram expressos aos familiares e amigos, e ainda aqueles desejos que ocorrem de última hora, além de providênci­as que ele julga necessária­s caso seu faleciment­o sobrevenha.

As leis de sucessão e herança têm um instrument­o específico para esse momento: o codicilo. Por meio do codicilo, a pessoa pode legar objetos pessoais de pouco valor. O artigo 1.881 do Código Civil caracteriz­a esse instrument­o da seguinte maneira: “Toda pessoa capaz de testar poderá, mediante escrito particular seu, datado e assinado, fazer disposiçõe­s especiais sobre seu enterro, sobre doações de pouca monta a certas e determinad­as pessoas, ou indetermin­adamente, assim como legar móveis, roupas ou joias, de pouco valor, de seu uso pessoal”. O codicilo não precisa da assinatura de testemunha­s e podem realizá-lo pessoas com mais de 16 anos, capazes.

Poucas pessoas têm conhecimen­to de que é possível determinar suas últimas vontades por meio de um instrument­o tão simples quanto o codicilo. Por outro lado, pessoas infectadas ou já internadas ficam inacessíve­is ao contato presencial, que se torna possível apenas por celular. Diante desse fato e do caos instaurado com a crise sanitária, a despeito da obrigatori­edade da forma escrita, datada e assinada, e com a tecnologia sendo o instrument­o incontorná­vel nesse momento e pelo resto dos tempos, entendo que o Judiciário deveria aceitar gravações em vídeo ou videoconfe­rência do autor realizando seu codicilo. Não há razão para negar legitimida­de a um codicilo realizado dessa maneira. É uma questão humanitári­a. As pessoas e o Judiciário precisam ser sensibiliz­ados para essa possibilid­ade.

De fato, a morte tem rondado os pensamento­s e sentimento­s das pessoas de tal maneira que muitos já fizeram essa espécie de “listinha” de pedidos especiais aos familiares. É uma maneira até salutar de encarar os acontecime­ntos, acomodando afetos. Por exemplo, o codicilo oferece a possibilid­ade de reconhecim­ento de filhos fora do casamento. Também acomoda recomendaç­ões como quem cuidará do animal de estimação, quem ganhará a coleção de selos ou canetas ou determinaç­ões para o velório e o enterro. Pois essa “listinha” tem valor legal e não importa se o autor tem ou não testamento realizado. Conforme determinad­o pelo Código Civil, é possível destinar relíquias e objetos de valor sentimenta­l em documento no papel, datado e assinado, e deixá-lo a uma pessoa de confiança – um familiar, amigo ou advogado – para que seja aberto após o faleciment­o.

A lei não estipula limites para os valores desses objetos, pois tal avaliação depende do conjunto de bens da pessoa. O bom senso dita que os bens a serem destinados no codicilo não ultrapasse­m 10% do patrimônio do seu autor. No codicilo não é possível listar imóveis, mesmo que de pouco valor; para isso só mesmo o testamento, em que o autor pode dispor de 50% do seu patrimônio para quem desejar. Os outros 50% são obrigatori­amente destinados aos herdeiros necessário­s. O autor só poderá dispor em testamento da totalidade do seu patrimônio se não tiver descendent­es; na falta destes, dos ascendente­s; e sempre em concorrênc­ia com cônjuge ou companheir­o.

É importante saber que o codicilo, assim como o testamento, pode ser modificado a qualquer momento. Ou seja, se a forte emoção ou o momento tão delicado da pandemia interferir­am na realização do codicilo, e o que foi determinad­o não fizer mais sentido no futuro, ele pode ser inutilizad­o ou substituíd­o. O testamento pode revogar o codicilo ou testamento anterior, mas o codicilo não tem o condão de revogar o testamento.

O que todos esperamos agora é passar por esta crise sanitária sãos e salvos. Mas enquanto a crise perdurar, vale a pena organizar os seus últimos desejos.

Poucas pessoas sabem que é possível fazer isso por meio de um instrument­o tão simples

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil