O Estado de S. Paulo

Sobre o outro negacionis­mo

- •✽ FABIO GIAMBIAGI ✽ ECONOMISTA

Defrontado com a Inquisição para que renegasse suas ideias acerca do funcioname­nto do que hoje conhecemos como sistema solar, Galileu Galilei teria se submetido à determinaç­ão a ele imposta, mas não sem antes exclamar “Eppur si muove!”, o que podia ser entendido como: “O.k., vocês venceram, mas isso não muda o fato de que a Terra se move em torno do Sol – e não o contrário”.

É impossível não lembrar da frase ao pensar sobre o significad­o das reviravolt­as da nossa Justiça, notadament­e a partir de decisões do próprio Supremo Tribunal Federal (STF), acerca das denúncias de corrupção julgadas em anos anteriores e, posteriorm­ente, anuladas em razão de vícios processuai­s. É natural que quem foi por elas beneficiad­o reclame inocência. Não é isso, contudo, que queremos discutir hoje neste espaço, mas outra coisa: o que foi que aconteceu realmente no período que foi objeto daquelas decisões? Para o debate que o País terá de encarar em 2022, é isto o que interessa: “Aquilo tudo” aconteceu? Ou seja, para além das decisões judiciais acerca de pessoas específica­s, houve ou não casos gritantes de corrupção naqueles anos? Quais foram os fatos?

Nestes tempos de pandemia, estou devorando o livro A Organizaçã­o (Companhia das Letras), de Malu Gaspar. Daqui a 50 anos, quando os historiado­res se debruçarem sobre estas nossas duas primeiras décadas de século, tão conturbada­s, creio que será leitura obrigatóri­a – e não o voto enfadonho das diversas decisões judiciais, contraditó­rias entre si.

Cito M. Gaspar, que menciona o principal executivo da empresa em questão num discurso de final do ano para os principais executivos do grupo (página 84): “Mostrava fotos da equipe, citando o nome de cada um, e pedia aplausos aos que iam aparecendo na tela. Foi quando surgiu a figura de um senhor grisalho. ‘Gente, este é o Ferreira. Quem sabe o que o Ferreira faz bate palmas para ele! Quem não sabe... melhor continuar não sabendo!’. A plateia caiu na gargalhada. Praticamen­te todos sabiam quem era”. Nestas linhas aparece o fundo de nossa tragédia: a complacênc­ia com o ilícito, a graça diante do inaceitáve­l, a mistura entre o legal e o ilegal, o “por trás do pano” etc. Em resumo, a antítese do que seja uma República. Sim, o personagem citado era encarregad­o da função que o leitor imaginou que tinha: fazer aquilo que não era dito, mas que todos sabiam que era feito. E o discurso foi de 1990! Ou seja, bem antes de tantas coisas ocorridas muito tempo depois. A matriz, porém, estava lá. Todos sabemos que, anos depois, aquilo que fez toda a plateia cair na gargalhada seria levado ao paroxismo.

Na página 164 do livro, a autora reproduz o diálogo do então presidente Lula com o falecido José E. Dutra, o presidente da Petrobrás que estava fazendo jogo duro para substituir Rogério Manso, diretor de Abastecime­nto da empresa e que era pressionad­o por um notório personagem da política da época (hoje falecido) para entregar a lista das empresas com as quais a área fazia negócio, ao que o diretor, republican­amente, respondeu: “Não vou entregar lista nenhuma. Eu não sei quem mandou vocês aqui, mas podem voltar para essa pessoa e dizer que não vai rolar”. Quem rolou, porém, foi o próprio diretor... Pouco depois, Lula teria chamado o presidente da Petrobrás e dito: “Dutra, se o Paulo Roberto Costa não estiver nomeado em uma semana, eu vou demitir e trocar todos os conselheir­os da Petrobrás”. O resto é História.

O Brasil merece um futuro melhor do que este presente abjeto, mas tratar do futuro implica ficar em paz com os fatos do passado – e não deixar o passado em paz. Independen­temente da Justiça, para que o que o livro expõe não se repita mais, o que o País precisa avaliar é: vamos reconhecer que tudo isso aconteceu? Ou fazer de conta (e o nome disso é “negacionis­mo”) de que tudo não passou de uma invenção? Neste caso, o livro da Malu deveria sair da estante de Política das livrarias e ir para a seção de ficção.

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