O Estado de S. Paulo

CONVENÇÕES SOCIAIS

No Festival de Cannes, destaque para a exibição de filmes em que a raiva feminina é libertada em forma de grito

- Mariane Morisawa ESPECIAL PARA O ESTADÃO

Medusa, o filme da brasileira Anita Rocha da Silveira exibido na Quinzena dos Realizador­es, mostra paralela de Cannes, não é o único em que a raiva feminina é libertada em forma de grito. Outros longas em exibição no festival, todos dirigidos por mulheres, também expressam assim anos de contenção do eu verdadeiro, de repressão de emoções, desejos e atitudes considerad­os pouco apropriado­s para moças recatadas, de luta para conseguir seu espaço. “É como se fosse um rugido coletivo”, disse a costa-riquenha radicada na Suécia Nathalie Álvarez Mesen, diretora de Clara Sola, também da Quinzena dos Realizador­es, ao Estadão, por videoconfe­rência.

Em seu longa de estreia, ela voltou a seu país de origem para falar de Clara (Wendy Chinchilla Araya), uma mulher de 40 anos retraída, considerad­a milagreira pela comunidade local, que tem um despertar sexual e de libertação das convenções sociais. Como em Medusa, a opressão patriarcal sobre Clara vem de outras mulheres, no caso, sua mãe, associada a dogmas religiosos. “Quisemos usar essa chance para dar um rugido coletivo por todas as mulheres que não têm oportunida­de de elevar suas vozes”, afirmou Mesen. “Nossa personagem é sozinha, mas, como agora está no mundo, ela não está mais sozinha. Acho importante a gente soltar esse grito para poder começar de novo e melhorar o caminho para as próximas gerações.”

A jovem atriz Luàna Bajrami, de apenas 20 anos, coloca o rugido no título de seu filme de estreia, The Hill Where the Lionesses Roar (na tradução livre, a colina onde as leoas rugem), também apresentad­o na Quinzena dos Realizador­es. Bajrami nasceu no Kosovo e foi criada na França, onde atuou em produções como Retrato de uma Jovem em Chamas, de Céline Sciamma. Em seu filme, ela volta à pequena vila de Pleshina, no Kosovo, onde nasceu, colocando três amigas no centro da história: as adolescent­es Qe (Flaka Latifi), Jeta (Uratë Shabani) e Li (Era Balaj) passam seus dias conversand­o, rindo e fazendo nada enquanto esperam a resposta da universida­de, seu passaporte para fora daquele lugar sem futuro. As três começam a cometer crimes, seja para juntar o dinheiro necessário, para afirmar que podem apesar de ser meninas ou simplesmen­te combater o tédio. “Era importante, para mim, mostrar essa perspectiv­a e também deixar claro que elas são presas às condições locais, mas que compartilh­am as mesmas insatisfaç­ões que muitos jovens franceses, por exemplo”, disse Bajrami ao Estadão.

Em Libertad, exibido na Semana da Crítica, a espanhola Clara Roquet também faz sua estreia em longas. Aqui, o grito fica preso na garganta numa história dominada por mulheres de gerações e classes sociais diferentes, ainda assim à mercê dos homens. A adolescent­e Nora (Maria Morera) passa férias na praia com a irmã mais nova e a mãe, Teresa (Nora Navas), na luxuosa casa da avó, Ángela (Vicky Peña). Rosana (Carol Hurtado) é a imigrante colombiana contratada para cuidar de Ángela, que sofre de Alzheimer. A chegada da filha de Rosana, Libertad (Nicolle García), que vem da Colômbia para reencontra­r a mãe depois de dez anos, vai romper o equilíbrio delicado dessas relações.

Nora e Libertad são muito diferentes, mas ficam amigas. “Eu quis indagar se é possível quebrar as barreiras de classe por meio da amizade, do amor, da conexão”, disse Roquet em entrevista ao Estadão. É impossível não assistir a Libertad sem pensar no brasileiro Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert. Rosana é considerad­a “da família”, mas logo se vê que as coisas não são bem assim. Roquet conheceu o filme brasileiro quando já tinha escrito o roteiro, que é inspirado pelas suas pesquisas com imigrantes latinas para seu curta El Adiós (2015) e sua própria história familiar.

Os três filmes são exibidos num ano em que a competição do Festival de Cannes teve, novamente, um pequeno número de longas dirigidos por mulheres – 4 entre 24. Na mostra Um Certo Olhar, a situação é um pouco melhor: 7 entre 20 dirigidos por mulheres. As paralelas foram mais equilibrad­as. Na Quinzena dos Realizador­es, dos 25 longas apresentad­os, 13 são dirigidos por mulheres ou por pelo menos uma mulher. Na Semana da Crítica, 7 dos 13 longas são comandados por pelo menos uma mulher. “Vejo progresso, mas claro que há um longo caminho a percorrer”, observou Nathalie Álvarez Mesen. “Eu trabalhei com muitas mulheres e, de modo geral, escolhi meus colaborado­res sabendo que eles tinham a mesma visão de respeito por esta história feminista, de empoderame­nto feminino.”

FESTIVAL TEM POUCOS LONGAS DIRIGIDOS POR MULHERES

 ?? ACAJOU PRODUCTION­S ?? Tempo vago. Em ‘The Hill Where the Lionesses Roar’, de Luàna Bajrami, três amigas cometem crimes para combater o tédio
ACAJOU PRODUCTION­S Tempo vago. Em ‘The Hill Where the Lionesses Roar’, de Luàna Bajrami, três amigas cometem crimes para combater o tédio

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil