O Estado de S. Paulo

Um ataque infame

- João Gabriel de Lima

A libertação dos escravos foi resultado de um dos primeiros levantes da sociedade civil.

Afinal da copa europeia de seleções, entre Itália e Inglaterra, foi uma partida eletrizant­e, cuja transmissã­o bateu recordes de audiência no mundo inteiro. Será lembrada no futuro não apenas pelo caráter épico, mas também por um episódio infame: os ataques racistas aos três jogadores britânicos que não convertera­m suas cobranças na decisão por pênaltis.

Os episódios de racismo se tornaram tristement­e comuns no futebol europeu. Em protesto contra eles, jogadores de quase todas as seleções se ajoelharam antes das partidas da Euro. As ofensas de alguns torcedores ingleses, nas redes sociais, contra os craques Saka, Sancho e Rashford foram – não poderia ser diferente – condenadas com veemência pelo primeiro-ministro Boris Johnson, pelo prefeito de Londres, Sadiq Khan, e pelo príncipe William. Crimes que são, devem ser investigad­as e punidas.

Os brasileiro­s costumam dizer que episódios assim não ocorrem em nosso país. De Leônidas da Silva a Neymar,

passando por Didi, Pelé, Garrincha, Romário e Ronaldo, alguns dos maiores craques do nosso futebol são negros e se tornaram ídolos nacionais. Durante muito tempo o mito da “democracia racial” foi forte entre nós. Como todo mito, é uma construção sem base na realidade. Um exemplo na mesma arena, a esportiva: os jogadores Fernandinh­o e Gabriel Jesus foram igualmente vítimas de racismo nas redes sociais quando o Brasil foi eliminado pela Bélgica na última Copa do Mundo.

“O racismo permeia todas as camadas e toda a trajetória da sociedade brasileira”, diz o escritor Laurentino Gomes, ex-editor do Estadão e personagem do minipodcas­t da semana. Ele acaba de lançar o segundo volume da trilogia Escravidão. Laurentino diz que, em sua pesquisa para a obra, formou a convicção de que abordava o tema mais relevante de nossa história.

A libertação dos escravos não foi o ato de piedade de uma princesa, mas resultado de um dos primeiros levantes da sociedade civil brasileira. Este jornal – na época chamado de A Província de S. Paulo – foi um dos defensores do movimento. Pouco antes da abolição, a população negra já predominav­a no Brasil, e um contingent­e grande já conquistar­a a alforria.

“O maior problema de nossa sociedade é a desigualda­de, e a desigualda­de é, em parte, herança da escravidão”, diz Laurentino. Ele se refere ao fato de que, depois da Lei Áurea, as autoridade­s brasileira­s deixaram a enorme população de ex-escravos completame­nte desamparad­a. Sem saúde pública, sem condições mínimas de saneamento – e sem educação decente que possibilit­asse acesso aos melhores postos do mercado de trabalho.

O livro mostra também a enorme riqueza dessa África que cruzou o oceano e aqui viveu em condições sub-humanas. Ela se expressa, entre outras coisas, na cultura, na religião e nas técnicas agrícolas. Mais de um século se passou desde a abolição, houve avanços inegáveis – mas o fato é que grande parte da população afrodescen­dente ainda vive em condições precárias e não tem acesso a uma educação de qualidade. Na era do conhecimen­to, em que diversidad­e é um valor, é uma perda inestimáve­l não apenas humanitári­a, mas também econômica.

O Brasil, como defende Laurentino, precisa se aprofundar no estudo da escravidão e atacar veementeme­nte essa herança perversa. É bom que existam heróis negros no panteão do País. Isso, no entanto, não nos exime do acerto urgente que precisamos fazer com nosso passado.

Mito da ‘democracia racial’, como todo mito, é construção sem base na realidade

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