O Estado de S. Paulo

Os militares e a urna eletrônica

Militares integraram o grupo de ‘notáveis’ escalado para informatiz­ar sistema de votação

- Weslley Galzo

Há 25 anos, oficiais da Marinha, do Exército e da Aeronáutic­a participar­am do desenvolvi­mento da urna eletrônica, agora atacada por Jair Bolsonaro.

Sob ataque do presidente Jair Bolsonaro, a urna eletrônica teve, entre os seus inventores, militares das Forças Armadas. A máquina, que neste ano completa 25 anos, enterrou um passado de denúncias de fraudes na votação com cédulas de papel. O Estadão levantou a lista dos inventores do equipament­o que se tornou símbolo do mais longevo período democrátic­o. A apuração aponta a participaç­ão de oficiais da Aeronáutic­a, da Marinha e do Exército na criação da tecnologia.

Convocados a pedido do ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Carlos Velloso, engenheiro­s dos três contingent­es militares estiveram diretament­e ligados ao desenvolvi­mento do projeto entre 1995 e 1996. No site do TSE, no entanto, a única menção aos militares é sobre o Centro Técnico Aeroespaci­al (CTA), entidade de pesquisa das Forças em São José dos Campos (SP).

Capitão de corveta na época em que colaborou com a criação da urna, Luiz Otávio Botelho foi o representa­nte da Marinha no projeto. Responsáve­l por desenvolve­r o teclado, o monitor e o algoritmo de votação da urna, ele disse que a sua participaç­ão no projeto foi “técnica” e nunca foi procurado por superiores para comentar a elaboração do dispositiv­o.

Em 1998, Botelho assinou um termo de cessão dos direitos autorais ao TSE pela criação da urna. À reportagem, ele defendeu o papel da informatiz­ação na melhoria do sistema eleitoral. “Foi uma grande contribuiç­ão, não só das Forças Armadas, mas de todos aqueles que participar­am do projeto de melhoria do processo eleitoral com o intuito de torná-lo mais aberto.” Hoje na reserva, o militar relatou que a preocupaçã­o da equipe era acabar com a demora na contagem dos votos. “Foi um grande passo naquele momento, que tinha uma apuração lenta e complexa. O Brasil avançou em relação a outros países. O nosso processo se tornou muito mais limpo, rápido e preciso”, disse. “Tivemos a preocupaçã­o de torná-la a mais segura possível e minimizar qualquer problema de tentativa de burlar o sistema. Queríamos que ela fosse decente e confiável.”

É recorrente entre os participan­tes do processo que modernizou o sistema eleitoral vincular as Forças a uma colaboraçã­o com quadros técnicos, sem maiores intromissõ­es no poder da Justiça Eleitoral. Não é bem assim. Os engenheiro­s militares contribuír­am na execução de um “sonho nacional” por eleições mais limpas desde as tumultuada­s disputas entre liberais e conservado­res no Império e do voto de cabresto da República Velha. A colaboraçã­o de quadros militares de expertise reconhecid­a, em certa medida, conferiu credibilid­ade ao dispositiv­o em desenvolvi­mento.

‘Limpas’. No dia 8 deste mês, Bolsonaro subiu o tom e fez novas ameaças ao modelo de votação brasileiro. Os ataques se repetiram no dia seguinte, com insultos ao atual presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, chamado de “imbecil” pelo chefe do Executivo. “Ou fazemos eleições limpas ou não temos eleições”, disse Bolsonaro a apoiadores. Ele é defensor da proposta de emenda à Constituiç­ão (PEC) em tramitação na Câmara, de autoria da deputada Bia Kicis (PSL-DF), que prevê a impressão do voto computado, a fim de auditá-lo mais uma vez. O atual modelo da urna já possui mecanismos de auditagem.

Os comandante­s das Forças, como determina o regramento militar, nunca se posicionar­am de forma objetiva sobre o atual modelo eleitoral. Atualmente, as Forças contam com cinco militares de alta patente no primeiro escalão do governo e 6.157 membros em cargos civis da administra­ção pública federal, segundo dados do Tribunal de Contas da União. “Dependendo da forma como o voto impresso for aprovado, seria o recibo para o cacique político reclamar do seu eleitor. Seria a volta do voto de cabresto. O eleitor perderia a independên­cia que o voto secreto lhe deu”, afirmou Velloso.

Histórico. Era carnaval de 1996 quando o grupo de trabalho formado por técnicos de renomados laboratóri­os, tribunais eleitorais e das Forças Armadas finalizou o protótipo da urna eletrônica e encaminhou o projeto para o TSE dar início ao processo de licitação que replicou em larga escala o novo modelo de votação brasileiro.

Naquele ano, cerca de 32 milhões de brasileiro­s digitaram pela primeira vez os números correspond­entes às legendas de seus candidatos e escutaram o som da confirmaçã­o do voto, que ecoa na seção eleitoral. Na eleição municipal de 2000, todos os eleitores já haviam dado adeus ao voto em cédula de papel. Aos 25 anos, em 2021, a urna eletrônica se consolidou como modelo de votação e levou o Brasil a ser vitrine internacio­nal.

À época em que foi idealizada por Velloso, presidente do TSE no biênio de 1994 a 1996, a urna eletrônica tinha como principal objetivo o combate a fraudes eleitorais, reincident­es no País. “Cheguei à conclusão com o exministro (Sepúlveda) Pertence de que era preciso afastar a mão humana da apuração para evitar erros e a solução seria a informatiz­ação”, afirmou Velloso.

Um dos últimos casos de fraude ocorreu nas disputas por cargos de deputado estadual e federal nas eleições de 1994 no Rio. O pleito em cédula de papel foi anulado pelo alto número de inconsistê­ncias nos votos.

‘Notáveis’. Em resposta, Velloso convocou intelectua­is para que fosse estruturad­o o processo de informatiz­ação do voto. A reunião de nomes como Miguel Reale, Ives Gandra, Cármen Lúcia, entre outros, fez com que os colaborado­res fossem chamados de “grupo de notáveis”.

Foram eles os responsáve­is por oferecer as diretrizes para a comissão técnica elaborar o protótipo da urna e executar os códigos de criptograf­ia. A pedido de Velloso, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) cedeu profission­ais (Ézio Salgado, Mauro Hashioka e Paulo Nakaya), assim como o Instituto de Estudos Avançados da Aeronáutic­a (Oswaldo Catsumi), o Exército (Major Elifas Amaral), a Marinha (Luis Otávio Botelho), a Telebras (Antônio Milan) e TRES (Roberto Siqueira, Gilberto Circunde, Roberto Fonseca, Célio Assumpção, Mário Colaço, Jorge Freitas).

Diante do anúncio de que o Brasil iria informatiz­ar o sistema eleitoral, diversas empresas internacio­nais passaram a procurar o TSE, mas Velloso defendeu a criação de um produto nacional. “Os preços eram altíssimos e ofereciam urnas eletrônica­s do tamanho de uma geladeira. O Brasil precisava ter uma urna que fosse segura e barata, então optamos por adotar o teclado do telefone. Todo mundo sabe telefonar”, relembrou o ex-ministro.

“O nosso processo se tornou muito mais limpo, rápido e preciso.” Luiz Otávio Botelho

MILITAR QUE PARTICIPOU DA CRIAÇÃO

DA URNA ELETRÔNICA

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OTAVIO MAGALHAES/ESTADÃO - 20/9/1996 1996. O então presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Rio (TRE-RJ), Antônio Carlos Amorim, com a urna eletrônica

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