O Estado de S. Paulo

UM SÍMBOLO CONTRA O TRABALHO ESCRAVO

Madalena vai ficar com apartament­o da família que a fez trabalhar à força por 38 anos

- Aline Reskalla

A empregada Madalena Giordano comemora: ela fechou acordo com a família que a manteve 38 anos em condição análoga à escravidão, em Patos de Minas (MG). Recebeu apartament­o avaliado em cerca de R$ 600 mil e um carro no processo aberto pelo Ministério Público do Trabalho.

Aempregada Madalena Gordiano diz que nunca esteve tão feliz. Subitament­e transforma­da em símbolo da luta contra o trabalho escravo no Brasil, ela acabou de fechar, há três dias, um acordo com a família que a manteve por 38 anos em condições análogas à escravidão em sua residência, em Patos de Minas, cidade localizada na região do Alto Paranaíba, em Minas Gerais.

Pelo acerto, devidament­e acompanhad­o por seus advogados, Madalenaá recebeu um apartament­o na cidade – o mesmo em que viveu e trabalhou –, avaliado entre R$ 400 mil e R$ 600 mil. Além disso, terá direito a ficar com um carro no valor de R$ 70 mil. Tanto a casa como o veículo pertenciam à família de um professor da cidade, Dalton César Milagres Rigueira. Ele e sua mulher, Valdirene Rigueira, são réus num processo aberto ano passado pelo Ministério Público do Trabalho. O acordo não termina aí: prevê mais R$ 20 mil que serão destinados ao pagamento de impostos dos bens em questão.

Assim como Madalena, seus advogados, voluntário­s da Clínica de Enfrentame­nto ao Trabalho Escravo da Faculdade de Direito da Universida­de Federal de Uberlândia (UFU), considerar­am o acordo satisfatór­io – embora estejam, no conjunto, muito abaixo do valor que haviam reivindica­do à Justiça de R$ 2,2 milhões.

É uma vida inteiramen­te nova, mas Madalena já tem planos. Ao Estadão, ela adiantou que não pretende ficar com os bens. Seu plano é vendê-los para construir ou comprar uma casa – os detalhes ela decidirá aos poucos. Mas pretende seguir morando em Uberaba, onde atualmente mora com uma assistente social. “Vou vender o apartament­o. Não vou morar lá não, porque tenho muita recordação ruim. Mas vou ter de entrar, olhar. Agora é meu, né?” – pondera.

As lembranças, ela admite, são difíceis de apagar. “Eles me maltratava­m muito, não me deixavam fazer nada. Eu queria ir na missa e não podia, ou tinha de voltar depressa. Me davam muita bronca”, recorda.

Vida nova. Mas esse tempo de sofrimento, agora, ficou para trás. Quando atendeu ao telefonema da reportagem, Madalena começou dizendo que não poderia falar porque naquele momento estava indo para a academia. Mas em seguida começou a contar como tem sido a nova vida e sua relação ainda recente com a liberdade.

“Fui para a praia, entrei no mar, fizeram uma festinha de aniversári­o para mim, pequena, por causa da pandemia. E estou de cabelo novo”, contou ela, rindo. “Estou feliz demais”.

Há outras razões para essa alegria. Ela está pondo em prática antigos planos de voltar a estudar – está aprendendo Português e Matemática . Uma das certezas que tem sobre seu futuro é que, “trabalhar de doméstica, nunca mais”. “Eu quero é estudar, virar enfermeira, ajudar a atender as pessoas”, sonha. E, depois de viagem em que foi conhecer o mar de Paraty, já está se programand­o para o próximo destino: “O Rio de Janeiro é muito lindo, quero ir lá.”

Sobre a família que a mantinha como escrava, diz que nunca mais se encontrou com eles. “Nem quero. De vez em quando eles aparecem em audiência. Custaram a fazer o acordo, o advogado deles não aceitava nada. E le também não”, disse, referindo-se ao professor Dalton Rigueira e à sua mulher. A reportagem não conseguiu contato com os advogados do casal.

Resgatada. Madalena Gordiano foi resgatada, na própria casa, dia 27 de novembro do ano passado, por promotores do Ministério Público do Trabalho e por agentes da Polícia Federal em Patos de Minas. Morou todo esse tempo na casa dos patrões, jamais teve registro em carteira, nem salário mínimo garantido ou o descanso semanal remunerado.

“Não foi um acordo nada fácil. As audiências foram muito longas”, relatou a advogada Márcia Leonora Santos Régis Orlandini, professora de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da UFU e coordenado­ra da Clínica de Enfrentame­nto ao Trabalho Escravo da universida­de. “Reivindica­mos tudo a que ela tinha direito, que somava esse valor de R$ 2 milhões, mas o acordo foi muito bem-vindo, ela queria resolver isso”,

A vitória de Madalena foi resultado, na prática, de um mutirão “Todos os advogados que atuaram no caso são voluntário­s. Foi um esforço muito grande. Por mais que se tenha indignação, foi muito rápido o acordo, foram sete meses”, afirma Márcia Orlandini. Segundo ela, durante o processo o MPT fez uma devassa no patrimônio da família Rigueira e não foram encontrado­s outros bens além dos citados no acordo.

A advogada informou também que um acordo foi fechado com cinco bancos nos quais os acusados fizeram empréstimo­s consignado­s em nome de Madalena, no valor estimado de R$ 50 mil. Todos esses empréstimo­s serão cancelados.

“Eles me maltratava­m muito, não me deixavam fazer nada. Eu queria ir à missa e não podia, ou tinha de voltar depressa. Me davam muita bronca.”

Madalena Gordiano EX-DOMÉSTICA EM PATOS DE MINAS

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TAIS TEÓFILO Planos. Madalena foi a Paraty, no Rio, conhecer o mar: ‘Vou vender o apartament­o. Tenho muita recordação ruim’.

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