O Estado de S. Paulo

Desafios da democracia latino-americana

Às renitentes mazelas da região se soma uma crise de representa­tividade global.

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Após a redemocrat­ização dos anos 80 e 90, a democracia latino-americana se encontra em um ponto de inflexão. Na última década, os avanços sociais nutridos pelo superciclo das commoditie­s estancaram. O desgaste dos populismos de esquerda legou um cenário fiscal periclitan­te. Às renitentes mazelas latinoamer­icanas – a corrupção, a ineficiênc­ia dos serviços públicos ou a violência – veio se somar uma crise de representa­tividade global, que catalisou, entre outras coisas, os populismos reacionári­os. Os protestos de 2019 foram abafados pela pandemia, ao mesmo tempo que suas causas foram agravadas por ela.

Neste cenário, foi oportuna a proposta da Fundação FHC de dedicar um dos debates do ciclo que celebra os 90 anos do presidente Fernando Henrique à Arte da política democrátic­a e os desafios da globalizaç­ão. Junto a FHC, outros estadistas intelectua­is – o expresiden­te do Chile Ricardo Lagos; o ex-presidente do Uruguai Julio Maria Sanguinett­i; e o ex-chanceler uruguaio Enrique Iglesias – abordaram os desafios da transição democrátic­a e seus reflexos na contempora­neidade.

FHC descartou o risco de que a “árvore da democracia” seja arrancada pela raiz, mas alertou que ela pode definhar por falta de cultivo. Sanguinett­i apontou que, aos desafios políticos da redemocrat­ização e aos desafios econômicos da industrial­ização tardia, a pandemia gerou um “estranho parêntese” que impôs três “pontos de interrogaç­ão” críticos à democracia latino-americana: a aceleração da digitaliza­ção; a recuperaçã­o da centralida­de do Estado (com os riscos das tentações autoritári­as); e as vulnerabil­idades sociais.

“Esta pandemia revelou o nível de nudez de nossos países sobre esses temas”, disse Lagos. A exportação de bens primários vem dando alguma aceleração à recuperaçã­o econômica, “mas não recuperare­mos rapidament­e o emprego”. O choque de digitaliza­ção mostrou que o que era produzido com 10 milhões de empregados pode ser produzido com 9 milhões, “mas como criaremos empregos para este milhão remanescen­te?”. Outro efeito da digitaliza­ção, segundo Lagos, é que as redes sociais tornam a política mais “horizontal” do que “vertical”. “Falta ainda descobrir que instituiçõ­es políticas surgirão como resultado da revolução digital.”

As dificuldad­es da representa­ção político-partidária foram ilustradas a partir do cenário brasileiro: “Não são os partidos que conduzem o povo, o voto depende muito mais do desempenho pessoal”, disse FHC, “mas quando se chega ao poder, a vontade do governante não prevalece sem passar pelo Congresso.” É preciso “vivenciar uma permanente busca de composição entre a vontade das pessoas e a aceitação dessa vontade pelos partidos no Congresso”. Quando a autoridade máxima é refratária a buscar essa composição, como no Brasil, desencadei­am-se atritos institucio­nais perigosos.

Somem-se a essas dificuldad­es a crise do multilater­alismo e o desafio da inserção da América Latina no confronto entre China e EUA. Como lembrou Sergio Fausto, um dos moderadore­s, a batalha entre a democracia e o autoritari­smo no século 21 tem caracterís­ticas distintas da do século 20. Na guerra fria, a URSS era uma potência “evitável”, sem conexões econômicas com o mundo liberal. Já a China, apontou Sanguinett­i, se parece muito mais com o “velho império britânico”, é “muito mais comerciant­e” e não busca uma hegemonia político-ideológica. Não obstante, o controle da economia chinesa pelas lideranças político-ideológica­s impõe à comunidade global o desafio de repactuar as condições de cooperação econômica e, ao mesmo tempo, contrapor-se aos abusos do autoritari­smo.

Maus intelectua­is costumam apresentar soluções simplistas para desafios complexos, e maus estadistas costumam impô-las pela força. Como bons intelectua­is, os debatedore­s mostraram-se muito mais preocupado­s em expor com precisão os desafios. E, como bons estadistas, mostraram que as soluções dependerão da capacidade do povo de materializ­ar sua vontade em instituiçõ­es inovadoras e de líderes capazes de encarná-la.

Às renitentes mazelas desta região se soma uma crise de representa­tividade global

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