O Estado de S. Paulo

Na CPI, os fins não devem justificar os meios

- Celso Vilardi ADVOGADO, É PROFESSOR DE DIREITO NA FGV-SP

As apurações da CPI no Senado sobre a resposta do governo à covid19 devem apontar os responsáve­is pelo morticínio em curso e indicar os caminhos para que essa tragédia não se repita. A CPI é vital, portanto, para o próprio futuro do País.

Os fins, no entanto, não justificam os meios. O que se vê hoje, pesa dizer, é um enorme desrespeit­o à Constituiç­ão. Seja porque o princípio da não autoincrim­inação foi vilipendia­do, seja porque há um estupefaci­ente desrespeit­o aos advogados, sobretudo ao direito de defesa.

Políticos adoram criticar os excessos da Operação Lava Jato, mas na hora de respeitar as regras e os direitos dos investigad­os cometem excessos graves, dado que a versão do investigad­o, ou o seu silêncio, tem servido como mote para ordem de prisão ou pressões indevidas. Os advogados têm tido a palavra reiteradam­ente cassada, o que se traduz em ataque ao direito de defesa. Os senadores, tal como ocorre na sociedade, confundem o investigad­o com o seu advogado. Ignoram o direito de defesa, tornando os depoimento­s tensos, carregados de adjetivos contra os investigad­os, com ameaças de prisão, uma vez concretiza­da.

É chocante ouvir o presidente da CPI falar em perjúrio, um tipo penal inexistent­e na legislação brasileira. O desrespeit­o aos advogados também tem que ver com a desgastada imagem da advocacia, em função de nossas lideranças. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) precisa se reinventar. É necessário que nossos líderes trabalhem pelas prerrogati­vas profission­ais, pelo respeito profission­al e, sobretudo, pelo combate às faculdades que formam milhares de pessoas desprepara­das, mesmo aprovadas no Exame da Ordem. Os advogados nunca votaram no presidente da OAB nacional. As eleições são indiretas. O presidente chega ao poder em razão de um rodízio estabeleci­do em seu conselho – coisa de confraria. Enquanto perdemos prestígio e respeito, nossos últimos presidente­s têm demonstrad­o obsessão por temas políticos.

O ataque à Constituiç­ão conta, desta feita, com o surpreende­nte apoio do Supremo Tribunal Federal (STF). Em tempos de polarizaçã­o, tenho sido um defensor do STF e de seus ministros, vítimas de ataques sórdidos. Mas agora a Corte atacou o que deveria ser defendido: o direito fundamenta­l de não autoincrim­inação. De acordo com a Constituiç­ão, o investigad­o ou acusado tem o direito de permanecer em silêncio. Se resolver responder às perguntas, não pode ser preso, ainda que os investigad­ores entendam que está mentindo.

Não há crime de perjúrio, tampouco a obrigação de o acusado colaborar com a investigaç­ão. Nas palavras do ministro Celso de Mello, referendad­as pelo plenário da Corte em julgamento unânime, “o exercício do direito de permanecer em silêncio não autoriza os órgãos estatais a dispensare­m qualquer tratamento que implique restrição à esfera jurídica daquele que regularmen­te invocou essa prerrogati­va fundamenta­l”. E “impede, quando concretame­nte exercido, que aquele que o invocou, por tal específica razão, a ser preso, ou ameaçado de prisão, pelos agentes ou pelas autoridade­s do Estado”.

São incontávei­s os precedente­s do STF que garantem ao investigad­o permanecer em silêncio e ser assistido por advogado. Antes desta CPI, a Corte se inclinava a fixar o entendimen­to de que o investigad­o poderia até mesmo se recusar a comparecer, o que fazia todo o sentido. Se o investigad­o não vai falar, seu comparecim­ento só vai atrapalhar os trabalhos. A menos que o objetivo seja o espetáculo, e não a investigaç­ão.

Nesta CPI, porém, deu-se um retrocesso. De início o STF voltou atrás e decidiu que o comparecim­ento deve ser obrigatóri­o. Agora, para piorar, decidiu que, apesar de afirmar que jurisprudê­ncia está sendo respeitada, não existe direito fundamenta­l absoluto e cabe aos investigad­ores a análise, “à luz de cada caso concreto”, da “ocorrência de alegado abuso do exercício do direito de não incriminaç­ão. Se assim entender configurad­a a hipótese, dispõe a CPI de autoridade para a adoção fundamenta­da das providênci­as legais cabíveis”. Em outra decisão, restou assentado que o silêncio estava garantido ao acusado, mas não incluía perguntas relativas a terceiros.

Tais decisões indicam que o controle sobre os limites do silêncio é dos investigad­ores, não do investigad­o. Exigir que ele responda a questões relativas a terceiros é inadmissív­el, pois ao fazê-lo pode se incriminar. Ora, só à defesa cabe aquilatar os limites do direito de não autoincrim­inação. Em qualquer investigaç­ão em regimes democrátic­os, as provas contra o investigad­o devem ser obtidas apesar do seu silêncio.

O que está acontecend­o contraria tudo o que se sedimentou ao longo de décadas. Tive a oportunida­de de acompanhar várias CPIS, mas jamais vi nada igual. O fato de a causa ser nobre não justifica tamanho retrocesso. A (boa) intenção de responsabi­lizar os culpados por mais de 500 mil mortes não pode afrontar a Constituiç­ão. Se objetivamo­s proteger a democracia, não podemos admitir o ataque a direitos fundamenta­is. O grave retrocesso institucio­nal é o caminho mais curto para atentados à democracia.

O que está acontecend­o contraria tudo o que se sedimentou ao longo de décadas

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