O Estado de S. Paulo

Autoritari­smo turco se agravou após denúncia de corrupção

Quarto capítulo de série sobre desgaste nas instituiçõ­es mostra o presidente da Turquia, que transformo­u o país e foi exemplo para nações muçulmanas da região, mas desviou de curso ao abraçar o poder e conduzir seu governo em um 'regime de um homem só'

- Renata Tranches

Recep Erdogan passou a governar a Turquia em 2003. Opositores já apontavam sinais de autoritari­smo em 2013 quando, acusado de corrupção, endureceu a repressão. Para o analista Moisés Naím, causas usadas para explicar a atual onda populista sempre existiram. “O negativo é que a polarizaçã­o deixou de ser democrátic­a”.

Os críticos do presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, costumam lembrar de uma frase dita por ele em um comício no início de sua carreira: “A democracia é como um trem, você desce quando chega ao seu destino”. Para analistas, após quase 20 anos imprimindo sua marca na política turca com seu partido Justiça e Desenvolvi­mento (AKP), Erdogan não apenas desceu do trem, mas o trocou por uma locomotiva rumo ao autoritari­smo.

O combustíve­l com o qual Erdogan alimentou sua viagem autoritári­a foi uma denúncia de corrupção, que ele disse ser uma tentativa de golpe. A pesquisado­ra turca independen­te Begum Burak reconhece que Erdogan deu passos importante­s para democratiz­ar as relações civis-militares e entre Estado e religião. Em dezembro de 2013, porém, um escândalo de corrupção envolvendo mais de 60 membros do governo, um filho de Erdogan e um magnata da construção, mudou tudo.

O caso perseguiu o governo por meses, até ser rejeitado pela Promotoria em maio de 2014. A partir disso, segundo Burak, teve início um processo de enfraqueci­mento da democracia para que Erdogan se mantivesse no poder. “Em vez de investigar as denúncias de corrupção, o governo encobriu o evento e depois puniu os funcionári­os e os jornalista­s que trataram do assunto”, lembra Burak.

Após a tentativa de golpe militar de 2016, que deixou 265 mortos, Ancara culpou pelo levante o Movimento Hizmet, um antigo aliado e passou a tratá-lo como organizaçã­o terrorista. Segundo a agência de notícias EFE, até agora, as ondas de expurgos deixaram mais de 125 mil funcionári­os públicos e 6 mil acadêmicos desemprega­dos, 204 meios de comunicaçã­o fechados e cerca de 234,4 mil passaporte­s cancelados. Um balanço apresentad­o na terça-feira pelo ministro da Defesa, Hulusi Akar, revela que 23.364 soldados foram expulsos do Exército.

No total, quase 300 mil pessoas foram presas em dezenas de milhares de operações policiais nos últimos cinco anos, enquanto 289 processos judiciais foram abertos. Em 288 deles, cerca de 3 mil pessoas pegaram perpétua e outras 4.189 estão cumprindo outras penas de prisão.

Em seu livro sobre Erdogan The New Sultan: Erdogan and the Crisis of Modern Turkey, Soner Cagaptay escreve que, ao demonizar e reprimir eleitores que não votariam nele, o presidente agravou a polarizaçã­o entre uma coalizão nacionalis­ta de direita que acredita que a Turquia é o paraíso; e um grupo de esquerdist­as, secularist­as, liberais e curdos que se veem em um inferno. “Erdogan é o arquétipo dos políticos antielitis­tas, nacionalis­tas e conservado­res em ascensão ao redor do mundo”, diz Cagaptay.

É inegável o papel transforma­dor de Erdogan na Turquia nas últimas duas décadas. Em seu livro, Cagaptay diz que o presidente é um líder fundamenta­l na história do país, ganhando mais de uma dúzia de eleições nacionais desde 2002, principalm­ente por apresentar forte cresciment­o econômico, aumentar o rendimento­s e melhorar os serviços sociais.

Em 2013, Erdogan chegou à estação em que deveria desembarca­r. Então primeiro-ministro, seu governo comandou uma dura repressão aos protestos contra o estilo autoritári­o com o qual ele flertava, que começaram em maio daquele ano na Praça Taksim e se alastraram pelo país.

Os protestos foram desencadea­dos por um projeto arquitetôn­ico em Gezi Park, uma pequena área verde na Praça Taksim, em Istambul. Depois de oito anos e uma batalha cultural, a Praça Taksim tem hoje uma nova identidade.

Mas não foi só a praça que mudou. Segundo um estudo do Instituto Brookings (The rise and fall of liberal democracy in Turkey: Implicatio­ns for the West), ainda que seja difícil determinar um data exata em que o autoritari­smo de Erdogan ficou evidente, a brutal reação aos protestos espontâneo­s foi um crítico divisor de águas.

De lá para cá, aponta, as promessas iniciais de reforma deram lugar a políticas autoritári­as e disfuncion­ais. As conquistas econômicas e democrátic­as dos primeiros anos do governo – um modelo admirado por países vizinhos – diminuíram. A perseguiçã­o à imprensa, as reformas que minaram a independên­cia do Judiciário e o cerco à oposição aumentaram.

Segundo seus críticos, à medida que foi acumulando poder, ele foi se tornando intolerant­e e se afastando do Ocidente. O processo de adesão à União Europeia que ganhou fôlego nos primeiros anos paralisou e as relações com vizinhos e aliados tornaram-se mais azedas.

Para o analista britânico Gareth Jenkins, do Instituto Cáucaso-Ásia Central (Istambul), os protestos de Gezi Park chamaram a atenção do mundo para a natureza do governo AKP, mas para ele, os abusos começaram após as eleições de 2007, quando o partido conquistou uma vitória arrasadora .“Ali Erdogan finalmente entendeu que não apenas estava no cargo, mas no poder”, diz Jenkins, que vive em Istambul desde 1989 e acompanhou de perto a ascensão do líder turco. “Erdogansem­pref oi umclan destino no trem da democracia .”

No ano seguinte aos protestos de Taksim, após 11 anos como primeiro-ministro, Erdogan se lançou candidato à primeira eleição presidenci­al direta e articulou para mudar o sistema para presidenci­alismo. Erdogan foi eleito, e reeleito em 2018, e aposição cerimonial do presidente passou ateros maiores poderes da república.

O golpe militar frustrado – que na quinta-feira completou cinco anos – foi crucial para consolidar o poder do presidente. O governo rapidament­e atribuiu a ação a oficiais e civis associados a Fethullah Gulen, líder espiritual e religioso do movimento transnacio­nal Hizmet. Exilado nos EUA, Gulen rechaçou as acusações.

Em artigo sobre os cinco anos da tentativa de golpe, o chanceler turco, Mevlut Cavusoglu, afirma que membros da organizaçã­o foram sujeitos a lavagem cerebral. “A Feto, uma organizaçã­o terrorista secreta que se infiltrou nos órgãos do Estado, tentou destruir a democracia e derrubar o governo democratic­amente eleito pela força ”, afirmou, se referindo ao MovimentoH­izmet.

O movimento foi inicialmen­te aliado do AKP–osd ois posiçãoà ideologia Kemalista que, entre outras definições, instituía o secularism­o na Turquia. Após um esforço bem sucedido par afortalece­ra agenda islâmica no país, eles romperam. Hoje, segundo Jenkins, o Hizmet serve ao propósito de Erdogan de ter um eterno inimigo.

A perseguiçã­o ao movimento chegou a turcos no Brasil, um de-

les é Mustafa Goktepe, empresário e presidente do Instituto pelo Diálogo Intercultu­ral. Ele e o sócio Ali Sipahi foram alvos de um pedido de extradição em 2019 soba acusação de financiare­mo terrorismo. Sipahi passou 34 dias na prisão. Para evitar o mesmo, Goktepe ficou nos EUA, onde estava em viagem, até o Supremo Tribunal Federal negar o pedido de extradição de Sipahi, em agosto daquele ano.

“Pessoas estavam cansadas das várias imposições que não representa­vam nossa cultura. Erdogan veio como um salva-vidas, despertand­o grande ânimo nas pessoas, incluindo eu. Masas coisas mudaram ”, cont aG ok tepe, que agora não pode visitara família na Turquia e se entristece por não ter podido se despedir, nem cuidar do enterro do pai no ano passado. “O que temos hoje na Turquia é uma democracia autoritári­a.”

 ?? MURAD SEZER / REUTERS–29/10/2013 ?? 2013. Erdogan acena ao lado dos ex-líderes Shinzo Abe, do Japão, e Hassan Sheik Mohamud, da Somália, em inauguraçã­o de linha no Estreito de Bósforo
MURAD SEZER / REUTERS–29/10/2013 2013. Erdogan acena ao lado dos ex-líderes Shinzo Abe, do Japão, e Hassan Sheik Mohamud, da Somália, em inauguraçã­o de linha no Estreito de Bósforo

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