O Estado de S. Paulo

‘EUA usam o 5G para fazer bullying tecnológic­o’

Embaixador da China em Brasília diz que seu país não busca a hegemonia ou exportar ideologia

- Yang Wanming, embaixador da China no Brasil

Diplomata diz ver nova encruzilha­da nas relações entre Pequim e Washington e afirmou que seu país não tem a intenção de “desafiar ou substituir” ninguém. Quer, no entanto, ser visto com uma visão “racional e objetiva”. Sobre o Brasil, Wanming indica haver sintonia após a saída de Ernesto Araújo do Itamaraty.

Em meio ao centenário do Partido Comunista Chinês, o avanço da vacinação para combater a pandemia de covid-19 e um novo governo americano, o embaixador da China em Brasília, Yang Wanming, vê uma nova encruzilha­da nas relações entre Pequim e Washington. “A chave da questão é saber se os EUA reconhecem ou não que o povo chinês também tem o direito de buscar o progresso”, avaliou Wanming em entrevista ao Estadão.

O diplomata garantiu que seu país não tem a intenção de “desafiar ou substituir” ninguém, nem exportar ideologia ou buscar a hegemonia do mundo. Quer, no entanto, ser visto com uma visão “racional e objetiva”. Um dos pontos mais delicados no momento é em relação à tecnologia 5G, usada pelos EUA, segundo ele, como “bullying tecnológic­o”.

Sobre o Brasil, Wanming afirmou ter uma sintonia na visão das relações diplomátic­as entre a China e o Brasil depois da troca de comando no Itamaraty

de Ernesto Araújo para Carlos Alberto Souza Franco. O chanceler vê ainda disposição em novas parcerias em vacinas e oportunida­des para a exportação de produtos com maior valor agregado do Brasil para seu país. A seguir, os principais trechos da entrevista, concedida por e-mail. A íntegra pode ser lida no site do Estadão.

• Como está a relação entre EUA e China nestes primeiros meses do governo do presidente Joe Biden?

As relações China-EUA encontram-se numa nova encruzilha­da, e a chave da questão é saber se os Estados Unidos conseguem aceitar ou não a ascensão pacífica de um grande país com diferença no sistema social, na história, cultura e estágio de desenvolvi­mento, e se reconhecem ou não que o povo chinês também tem o direito de buscar o progresso. A política externa da China visa a uma relação sem confronto, pautada no respeito mútuo e na parceria de ganho mútuo. Ao mesmo tempo, defende a soberania, a segurança e os interesses de desenvolvi­mento da China. Esperamos que a parte americana possa avançar em direção a um meio-termo em busca de uma convivênci­a pacífica e parceria de benefício recíproco. Isso favorece à China, aos EUA e ao resto do mundo.

• A China é o maior parceiro comercial do Brasil. Como o senhor enxerga o futuro?

A China se mantém há 12 anos como o maior parceiro comercial do Brasil, o primeiro país da América Latina a ter um volume acima de US$ 100 bilhões. Mesmo na pandemia, esse comércio apresentou um cresciment­o robusto, que responde por quase 70% do superávit brasileiro. Nos próximos dez anos, a China importará cumulativa­mente US$ 22 trilhões em bens, criando oportunida­des para a exportação com maior valor agregado.

• Qual é sua expectativ­a para as negociaçõe­s em torno do 5G?

O 5G vai dar um impulso ao cresciment­o econômico dos países e é fundamenta­l para qualquer país escolher equipament­os verdadeira­mente confiáveis, avançados e de melhor custo-benefício. Os consumidor­es só se beneficiar­ão com uma concorrênc­ia justa, equitativa, aberta e transparen­te. Mesmo com um histórico manchado em matéria de segurança de internet e autor descarado de ataques cibernétic­os contra outros países, os EUA têm usado repetidame­nte o pretexto de segurança nacional para cercear empresas chinesas de alta tecnologia e interferir na escolha autônoma de parceiros

de 5G por outros países. O objetivo não é, de forma alguma, proteger a segurança cibernétic­a, mas sim manter sua rede de vigilância e a hegemonia digital, um ato típico de bullying tecnológic­o. Acreditamo­s que o governo brasileiro levará em conta os próprios interesses para viabilizar uma concorrênc­ia leal entre as empresas com regras transparen­tes, imparciais e sem discrimina­ção.

• Há preocupaçõ­es em relação a investimen­tos e compra de ativos no País e no mundo. Este é um movimento que antecede a liderança global chinesa?

Como segunda maior economia do mundo, a China se integra cada vez mais à economia mundial. Isso é um fato e uma tendência. A China tem no Brasil um aporte de mais de US$ 80 bilhões em uma ampla gama de setores, criando mais de 40 mil empregos diretos. Essa parceria tem como objetivo promover o ganho mútuo e o progresso comum.

• O senhor notou melhora nas relações com o Brasil depois da troca de embaixador, de Ernesto Araújo para Carlos Alberto Franco?

O primeiro chanceler estrangeir­o com quem o ministro Carlos Alberto França conversou por telefone foi o senhor Wang Yi, conselheir­o de Estado e ministro das Relações Exteriores da China. Também mantenho contatos frequentes com o ministro, que tem reiterado que as relações com a China são uma prioridade da diplomacia brasileira. A parte chinesa pensa da mesma forma. Desde o início da pandemia, venho mantendo a comunicaçã­o, principalm­ente em parceria nas vacinas, e falamos sobre a investigaç­ão da origem do vírus. A China foi o primeiro país a assumir o compromiss­o de tornar as vacinas um

bem público internacio­nal. Ao tratar o Brasil como parceiro prioritári­o, também foi o primeiro a desenvolve­r a parceria com vacinas. Poucas entregas de vacina pronta e de IFA (ingredient­e farmacêuti­co ativo, usado na produção das vacinas) têm a rapidez como as enviadas pela China ao Brasil. O país enfrentou pressões oriundas do desequilíb­rio entre a oferta e a procura global, a demanda da vacinação no próprio território e o limite de produção dos laboratóri­os. Estamos envidando esforços para assegurar a entrega de vacinas e IFA ao Brasil. Além disso, gostaríamo­s de realizar novas parcerias em vacinas.

• O senhor acredita que teremos essa resposta sobre a origem do vírus?

Investigar a origem de um vírus é uma questão científica que não deve ser politizada. Estigmatiz­ar ou politizar o assunto, além de antiético, só irá dificultar a cooperação global, minar os esforços conjuntos e custar mais vidas. Peritos da OMS chegaram a algumas conclusões importante­s: é altamente improvável uma fuga laboratori­al, não foi detectado nenhum surto relevante em Wuhan antes de dezembro de 2019 e a procura de casos precoces deve continuar. Teorias de conspiraçã­o como a de que “o novo coronavíru­s teria saído de um laboratóri­o” foram propagadas por alguns, de modo a distorcer o conhecimen­to

• Modelo chinês

“O socialismo com caracterís­ticas chinesas é o caminho assentado em sintonia com a realidade nacional e a tendência dos tempos”

Yang Wanming

EMBAIXADOR DA

CHINA NO BRASIL

científico, exacerbar confrontos no mundo e ameaçar a rastreabil­idade do vírus. A China continuará a cooperar com a investigaç­ão da origem do vírus.

• O mundo está pronto para ver a China como a maior potência global?

A China está construind­o um novo paradigma de desenvolvi­mento, mas ainda há problemas com a inadequaçã­o no seu desenvolvi­mento. A sabedoria de milênios de história da China nos ensina que a hegemonia levará ao declínio de um Estado e a força de um país não resulta inevitavel­mente em hegemonia. No gene da nação não há traços agressivos ou hegemônico­s. Não temos a intenção de desafiar ou substituir ninguém, nem exportar ideologia ou buscar a hegemonia do mundo. O país segue uma trajetória de ascensão pacífica, diferente do percurso tradiciona­l das grandes potências. Ao mesmo tempo, a comunidade internacio­nal precisa olhar a China com visão racional e objetiva.

• O Partido Comunista da China completou um século neste mês. Como será o próximo?

No primeiro centenário, o país construiu uma sociedade moderadame­nte próspera. Inicia no segundo a transforma­ção em um país socialista modernizad­o e poderoso. O socialismo com caracterís­ticas chinesas é o caminho assentado em sintonia com a realidade nacional e a tendência dos tempos. Os diferentes percursos históricos deram origem a uma profusão de culturas e sistemas sociais, o que faz com que existam vários modelos de democracia. Para 2049, o governo cria um novo paradigma de desenvolvi­mento e eleva seu nível de reforma e abertura ao exterior. Sozinho, nenhum país estará imune aos riscos e desafios globais.

 ?? ADRIANO MACHADO / REUTERS–15/5/2019 ?? Respeito mútuo.
Embaixador chinês em Brasília, Yang Wanming: ‘China segue uma trajetória de ascensão pacífica, diferente do percurso tradiciona­l das grandes potências’
ADRIANO MACHADO / REUTERS–15/5/2019 Respeito mútuo. Embaixador chinês em Brasília, Yang Wanming: ‘China segue uma trajetória de ascensão pacífica, diferente do percurso tradiciona­l das grandes potências’

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