O Estado de S. Paulo

Dois países, uma lição

- ANTONIO CARLOS PEREIRA / DIRETOR DE OPINIÃO

Estados Unidos e Brasil convergira­m em um ponto: as instituiçõ­es republican­as e os princípios democrátic­os foram atacados.

Em meio a tantas diferenças, as histórias dos Estados Unidos e do Brasil, as duas maiores democracia­s das Américas, convergira­m em um ponto: tanto lá como cá, de forma inédita em tempos recentes, as instituiçõ­es republican­as e os princípios democrátic­os mais comezinhos – como a pacífica alternânci­a no poder – foram perigosame­nte atacados pelos chefes de Estado e de governo dos dois países.

Nos Estados Unidos, a insurgênci­a do ex-presidente Donald Trump diante do resultado da eleição passada, na qual foi derrotado pelo democrata Joe Biden, represento­u a mais grave ameaça à integridad­e da nação desde a Guerra Civil (1861-1865). Em boa hora, os cidadãos americanos mostraram ao mundo de que material é feita aquela nação e ergueram a barreira de contenção que evitou a tragédia que seria o sucesso da sedição estimulada por Trump.

O caráter da cúpula das Forças Armadas dos Estados Unidos, em especial do chefe do Estado-Maior, o general Mark Milley, foi determinan­te para o fracasso da intentona trumpista e, consequent­emente, para o resguardo da democracia americana. É o que revela o livro I Alone Can Fix It (“Só Eu Posso Consertar”, em tradução livre), escrito por Carol Leonnig e Philip Rucker, dois premiados jornalista­s do The Washington Post.

Leonnig e Rucker narram a extrema preocupaçã­o do general Milley e de oficiais graduados em seu entorno durante as últimas semanas do mandato de Trump. A escalada das tensões provocadas pela negativa do ex-presidente de aceitar o resultado das urnas teria “revirado o estômago” de Milley, segundo os autores. O chefe do Estado-Maior manifestou explicitam­ente a seus subordinad­os diretos o temor de um golpe de Estado, a ponto de comparar a invasão do Capitólio insuflada por Trump ao incêndio do Reichstag em fevereiro de 1933, que alçou Adolf Hitler ao poder totalitári­o e fez cinzas da democracia alemã.

Segundo os autores do livro, ambos vencedores do Prêmio Pulitzer, Milley confidenci­ou a amigos, juristas e oficiais militares que precisava “estar de guarda” para evitar o pior naqueles dias sombrios que sucederam ao pleito de novembro de 2020. “Eles (Trump e seus partidário­s) podem tentar (dar um golpe), mas não vão conseguir. Você não pode fazer algo assim sem as Forças Armadas. Você não vai fazer isso sem a CIA, sem o FBI. Nós somos os caras com as armas”, disse a maior autoridade militar dos Estados Unidos a seus interlocut­ores próximos.

Durante a pacífica posse de Joe Biden como o 46.º presidente americano, o general Milley disse à ex-primeira-dama Michelle Obama que ninguém naquela cerimônia haveria de ter “um sorriso mais largo” do que o dele. O sorriso era justificad­o. No momento mais crítico da história recente dos Estados Unidos, as Forças Armadas americanas se mostraram ciosas de seus deveres constituci­onais, de seu papel como instituiçõ­es a serviço do Estado e da sociedade, não do governo de turno. É uma preciosa lição que deram nestes tempos tão estranhos.

Se os Estados Unidos estão refeitos do susto, o Brasil ainda segue sob o ataque de Jair Bolsonaro. Na semana passada, o presidente ameaçou sem meias palavras a realização das eleições de 2022 no País, caso o Congresso não aprovasse a volta do voto impresso. Levianamen­te, Bolsonaro dissemina desconfian­ça quanto à segurança das urnas eletrônica­s. Eleições “limpas”, para o presidente da República, só com voto “auditável”. Desnecessá­rio dizer o que Bolsonaro entende por “eleições limpas”.

O presidente sabe que haverá eleições no Brasil no ano que vem, como determina a Constituiç­ão, e que os brasileiro­s votarão por meio de urnas eletrônica­s, como fazem, sem qualquer sobressalt­o, há 25 anos. A suspeição que lança sobre a higidez do processo – e que já ressoa entre alguns militares graduados – visa a estimular a baderna em caso de derrota, tal como fez Trump.

Com bastante antecedênc­ia, Bolsonaro tem alertado para o golpe que pretende dar caso não seja reeleito. Portanto, deve ser contido por um entre dois anteparos constituci­onais: o impeachmen­t ou o republican­ismo da grande maioria dos oficiais das Forças Armadas brasileira­s.

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