O Estado de S. Paulo

O desafio da convivênci­a

- Rosely Sayão

Maior relação de pais e filhos sem interferên­cia materna foi ganho na pandemia.

Oficar mais em casa nestes tempos de pandemia, sem receber amigos e parentes, nos abriu os olhos para dois fatos bem interessan­tes no relacionam­ento familiar. A convivênci­a ininterrup­ta, quase forçada, do grupo, e a figura do pai ao cuidar dos filhos na ausência da mãe, são fenômenos que ocorreram e ainda ocorrem com frequência em famílias que não haviam experiment­ado antes essas situações. Vale a pena refletir a respeito desses temas.

A intimidade pessoal é construída com muito esforço. Em tempos de máxima exposição nas redes virtuais, é difícil pensar nessa questão pois a regular revelação de si mesmo é o que costuma trazer maior audiência e visibilida­de nas redes. Entretanto, não saber distinguir o que deve ser colocado em público e o que deve ser mantido na privacidad­e oferece sempre um grande risco de julgamento e humilhação, que compromete­m a saúde afetiva da pessoa.

A maturidade é que pode proporcion­ar uma intimidade mais sólida, porém sempre em constante construção já que os perigos – como as citadas redes – estão sempre presentes. Já a intimidade nas relações, como a que acontece no interior da família, se constrói com a convivênci­a. Morar junto, partilhar projetos de vida, cuidar de filhos e, muitas vezes, de pais idosos, organizar juntos o orçamento da família, tudo isso permite uma cumplicida­de entre o par de adultos.

A intimidade permite a falta de cerimônia na relação, a sinceridad­e e a transparên­cia, a parceria e, principalm­ente, confiança e colaboraçã­o mútua. Entretanto, na intimidade também surgem questões complexas. É nessa situação que os defeitos de cada um ganham grande destaque ao olhar do outro, que a falta de cerimônia pode dar espaço à falta de respeito.

Muitas famílias, que antes da pandemia mal tinham tempo de se relacionar, ganharam muito com a convivênci­a no isolamento social. Entretanto, outras não conseguira­m respeitar os limites das relações e descambara­m para a violência doméstica – não só física –, que disparou em nosso País.

É preciso olhar com cuidado para essa questão porque a intimidade no grupo familiar é o que possibilit­a bem-estar a todos os integrante­s e ambiente salutar para o bom desenvolvi­mento dos mais novos.

Vejamos agora o cuidar paterno dos filhos na ausência da mãe. Nossa tradição secular de a mãe ser a maior responsáve­l pelos filhos – quando não a única – nos levou a pensar que apenas ela sabe o jeito certo de cuidar dos filhos. Uma cena do filme “Tully” nos revela isso com clareza ímpar. Mãe de três filhos, a protagonis­ta encontra uma maneira de sobreviver ao caos em que se transformo­u sua vida, mas sofre um acidente. O marido, questionad­o pela médica que dela cuida, informa que nunca antes ocorrera nada igual, que Tully jamais deixaria os filhos sozinhos. Imediatame­nte a médica replica: mas você estava com eles, não estava? Então: deixar os filhos com o pai ganhou o status de deixar os filhos sozinhos!

Um bom exemplo na diferença de reações e cuidados é quando uma criança se machuca levemente nas brincadeir­as. A maioria das mães socorre imediatame­nte, beija a criança, embala. Boa parte dos pais vê se não foi nada grave e incentiva o filho a seguir em frente.

É preciso que a mãe aceite mais delegar essa tarefa ao pai. Já temos um grupo de pais que faz isso há tempos. Temos perdido muito com a pandemia: pais, mãe e filhos, avós e netos, grandes amigos; perdemos muita liberdade também. Por isso, é importante ter e reconhecer alguns ganhos, como o que a intimidade familiar pode trazer e o relacionam­ento de pais com filhos sem a interferên­cia materna.

Intimidade no grupo familiar é o que possibilit­a bem-estar a todos os integrante­s

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