O Estado de S. Paulo

O mundo às avessas, a covid-19 e o presidente

- Celso Lafer PROFESSOR EMÉRITO DA USP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (1992 E 2001-2002)

Oimpacto da covid-19, que se vem prolongand­o no tempo, é opressivo. Trouxe uma ruptura da “normalidad­e do normal”. Vem vitimando contínua e indiscrimi­nadamente e impondo à nossa gente o mastigar do pão da aflição e o sorver o amargor do sofrimento. As necessária­s medidas de isolamento afetaram todos os setores das atividades, com graves consequênc­ias econômicas e humanas. Impuseram significat­ivos limites ao convívio social. Deram a força do concreto ao esquema do pensar e da expressão do clássico tópos literário do “mundo às avessas”. Este articula com a ruptura da “normalidad­e do normal” um estado lamentável das coisas, instigando a indignação. São as razões mais abrangente­s dessa indignação com a maneira como o governo federal vem conduzindo as políticas públicas de saúde em nosso país o que norteia este artigo.

A pandemia do coronavíru­s surpreende­u governante­s e governados. É um fato excepciona­l, que resulta da conjunção pouco frequente de certas circunstân­cias. Não foi algo indetermin­ado que se esgota no âmbito do acaso. Mostrou o alcance irradiador do inesperado, dificilmen­te previsível pela escala global que assumiu quando se compara seu impacto e sua duração com prévias conhecidas pandemias do mundo contemporâ­neo.

O coronavíru­s pôs na pauta o novo dos riscos que vêm trazendo uma grande crise global da saúde pública. Esta se propaga por obra da porosidade das fronteiras, que internaliz­am, e ao mesmo tempo magnificam, pela dinâmica da era digital, os problemas internacio­nais na vida dos países. Evidenciou que as sociedades contemporâ­neas, inseridas para o bem e para o mal num mundo interconec­tado e interdepen­dente, são sociedades de risco. Correm muito mais do que no passado o risco de se afundarem, vitimadas pelo desgorgola­mento (a decapitaçã­o) que Gil Vicente, recorrendo ao tópos do mundo às avessas, se referiu no Auto Pastoril Português.

Uma sociedade de riscos, incluídos os manufatura­dos pela ação humana, como é o caso do meio ambiente e da sustentabi­lidade, exige a capacidade de orientar-se no mundo “que não dá a ninguém inocência nem garantia”, como dizia Guimarães Rosa. Pressupõe, na condução das políticas públicas, a responsabi­lidade e a seriedade na gestão de riscos. É o caso dos desafios da diplomacia das vacinas em matéria de política externa e dos grandes temas do multilater­alismo da governança global.

Num mundo caracteriz­ado pela velocidade dos processos com os quais a cultura científica da pesquisa básica e aplicada expande as fronteiras do conhecimen­to, a gestão dos riscos transcende o clássico “standard” da prudência. Requer a presença do papel da ciência e do conhecimen­to e dos seus valores de racionalid­ade e transparên­cia, para identifica­r apropriada­mente os riscos, mitigá-los e controlá-los.

Daí a inconformi­dade com este estado lamentável das coisas em nosso país provenient­e da postura negacionis­ta do presidente e de seu governo quanto ao papel da ciência e do conhecimen­to no enfrentame­nto da crise do coronavíru­s, que aprofunda um “mundo às avessas”.

O negacionis­mo se expressa por ações e omissões que a CPI está apurando. São agravadas pelas palavras do presidente. Estas ignoram o proceder com a dignidade e o decoro do cargo, que é o “standard” de conduta presidenci­al lícita, prevista na Lei 1.079, de 10 de abril de 1950.

Dignitas – dignidade –, ensina Cicero, é ter bons sentimento­s para com a res publica e dar provas aos homens de bem desses sentimento­s. Decoro, que, como dignidade, provém do latim decet, o que convém, o que é apropriado, manifestas­e pela compostura no exercício da função pública. Nem um nem outro se encontram nas palavras de ruptura e improvisaç­ões mal concebidas do presidente, que alimentam a inseguranç­a, corroem a confiança e dividem o País.

Não atendem ao papel que se espera de liderança, que é o de definir construtiv­amente rumos para a sociedade. São incompatív­eis com o zelo que deve presidir as políticas públicas de saúde numa situação-limite como a da pandemia.

Ensina o padre Antônio Vieira que “o verdadeiro zelo teme o perigo e trata dos remédios”, advertindo que “o maior perigo não é quando se teme o perigo, é quando se teme o remédio”. Os remédios são aqueles que o estágio atual do conhecimen­to e da ciência, validados pelos pesquisado­res nacionais e internacio­nais, indica em matéria de contenção e mitigação dos riscos da pandemia. Entre eles, vacinas e o seu papel imunizador, máscaras, isolamento social, administra­ção da sobrecarga dos cuidados hospitalar­es a serem implantado­s sem atropelos e desvios de qualquer natureza e sem o ímpeto desagregad­or das competênci­as concorrent­es dos Estados e dos municípios.

O presidente ignora a advertênci­a do padre Antônio Vieira: teme o perigo e com a opacidade intenciona­l da consciênci­a ignora os remédios. Dessa maneira vai prolongand­o o mal-estar do nosso quotidiano de um “mundo às avessas” com suas omissões, ações e palavras, reveladora­s de um modo de ser que não se ajusta à dignidade e ao decoro de seu cargo.

Palavras do presidente ignoram o proceder com a dignidade e o decoro do seu cargo

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