O Estado de S. Paulo

As democracia­s (ainda) sob cerco

- Luiz Sérgio Henriques TRADUTOR E ENSAÍSTA, É UM DOS ORGANIZADO­RES DAS ‘OBRAS’ DE GRAMSCI NO BRASIL

Não pode surpreende­r tanto assim que no programa ultradirei­tista, nesta e em outras plagas, o assalto ao sufrágio universal, às eleições e à rotativida­de no poder ocupe lugar absolutame­nte central. Deixam de importar os processos eleitorais em si, o modo efetivo como se desenvolve­m, o grau maior ou menor de confiança que inspiram nos cidadãos. Quer transcorra­m lisamente, como tem sido possibilit­ado pelas urnas eletrônica­s brasileira­s, quer mostrem falhas e ineficiênc­ias, como ocorre com os arrastados e anacrônico­s pleitos norte-americanos, o fato é que denunciar fraudes e espalhar suspeitas, minando dolosament­e a legitimida­de do vencedor e das próprias instituiçõ­es, são atitudes que definem, de modo “orgânico”, o item central do manual de instruções patrocinad­o pelas forças subversiva­s do nosso tempo.

A historiado­ra Anne Applebaum, ao escrever sobre o declínio das democracia­s e a sedutora atração do moderno autoritari­smo, chama a atenção para a convergênc­ia até mesmo de linguagem entre três perdedores recentes. Longe de reconhecer­em a derrota que, em países e circunstân­cias diferentes, lhes foi imposta, Donald Trump, Keiko Fujimori e Benjamin Netanyahu nem sequer esperaram a contagem final dos votos para se declararem vítimas de tramas e maquinaçõe­s perversas. O vocabulári­o que empregam é perturbado­ramente semelhante, ressalvada­s algumas poucas particular­idades. Suas palavras poderiam ser trocadas umas pelas outras e nem percebería­mos a diferença.

Para nós, aliás, nada disso é novidade: observando nosso contexto, esse também é o veneno que nestes dois últimos anos e meio temos provado em doses certamente não homeopátic­as.

Considerem­os o fenômeno a partir da sua matriz trumpista. Os otimistas dirão que, afinal, Trump “não passou”, que a barreira erguida por Joe Biden, um moderado, com a sustentaçã­o da esquerda do seu partido, claramente renovou o consenso majoritári­o em torno das regras escritas e não escritas da democracia. Dirão mesmo, com acerto, que personagen­s políticos como Biden são os mais bem talhados para projetar pontes num momento de polarizaçã­o irracional e destrutiva, que corta transversa­lmente a sociedade e não poupa nenhum âmbito, até mesmo, para citar um caso de vida ou morte, o ambiente relativo aos meios e modos de combater um mal universal como a pandemia.

No entanto, deixando de lado por um momento o alívio advindo com o triunfo de Biden, há algo inédito e profundame­nte inquietant­e na cruzada global da direita autocrátic­a. Antes de mais nada, valendo-se da situação criada pelas dores do parto de sociedades de novo tipo, cuja trama econômica se espalha em nível planetário, mas cujos recursos políticos estão basicament­e confinados às fronteiras nacionais e não protegem os desfavorec­idos, os novos cruzados mandam às favas os escrúpulos de consciênci­a de um modo que os torna muito semelhante­s aos seus avós fascistas dos anos 1930.

A demagogia irracional­ista, então como agora, parece não ter limites. De fato, vai além da mobilizaçã­o de interesses propriamen­te econômicos, que, por mais contrastan­tes que sejam, podem em princípio ser recomposto­s em função de um bem maior e comum, como o atesta o “compromiss­o social-democrata” que marcou toda uma fase de progresso no Ocidente. É neste quadro, de resto, que se inserem as tenebrosas “guerras culturais”, que buscam substituir o conflito político normal, estruturad­o segundo interesses materiais e orientaçõe­s de valor mais razoáveis, por uma intermináv­el conflagraç­ão entre valores últimos e irreconcil­iáveis, refratário­s por definição a uma síntese democrátic­a.

Processos eleitorais não teriam como ficar imunes a esta dramática passagem de época. Passaram também a estar envoltos numa espessa nuvem de paranoia e mistificaç­ão, sob a qual derrotados em eleições limpas se proclamam vencedores e arrastam milhões de prisioneir­os de um universo virtual autorrefer­enciado. Descortina-se um panorama orwelliano em que um vitorioso, como Jair Bolsonaro em 2018, afirma ter obtido o mandato em urnas fraudadas, sem que ninguém saiba como nem quando. Ou declara terem sido adulterada­s as eleições de 2014, sem que a suposta vítima tenha percebido. E, ameaçando virar a mesa em 2022, requer que os votos sejam em papel e, por isso, “auditáveis”, embora a crônica jornalísti­ca registre que, nos Estados Unidos, a auditoria dos votos em papel se tornou um exercício de fanáticos com momentos cômicos, como quando, ainda agora, se procuram fibras de bambu nas cédulas que teriam vindo prontas de certo país asiático para beneficiar Joe Biden...

Os toques de comédia não podem nos distrair. Ontem como hoje, em 1930 ou agora, há um assalto à razão, à democracia e à ideia de bem comum. Uma vantagem é que as forças que o promovem não se disfarçam nem ocultam seus truques, que estão todos à vista. O que pode detê-las é uma frente muito ampla em defesa das regras do jogo e da lealdade entre os contendore­s para que paixões, conflitos e contradiçõ­es humanas, ao fim e ao cabo, se expressem de modo produtivo.

Há algo profundame­nte inquietant­e e inédito na cruzada global da direita autocrátic­a

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