O Estado de S. Paulo

‘O negativo é que a polarizaçã­o deixou de ser democrátic­a’

- Rodrigo Turrer

Um dos principais observador­es do cenário geopolític­o mundial nos últimos anos, o venezuelan­o Moisés Naím alerta para os riscos da polarizaçã­o tóxica e uma alteração nas dinâmicas de poder. Ele defende a recuperaçã­o da narrativa da sociedade liberal para defender a democracia.

• No seu livro ‘O Fim do Poder’, o sr. diz que estar no comando não é o que costumava ser, porque o poder está mudando. Como isso afetou a democracia?

Demais. No século 21, o poder ficou mais fácil de se adquirir, mas mais difícil de usar, e mais fácil de perder. Há uma série de forças centrífuga­s que espalham o poder: grandes corporaçõe­s, mídias sociais, novas tecnologia­s. O embate entre as forças centrífuga­s que espalham poder e as forças centrípeta­s que concentram poder é uma dinâmica central. Você pode ver que onde o poder importa, esse duelo entre as forças que diluem e as forças que concentram é constante.

• O que trouxe o mundo a esse estado? Foi a polarizaçã­o, as redes sociais, os desafios econômicos, a insatisfaç­ão das pessoas com a desigualda­de econômica? É preciso ter cuidado, porque a maioria dessas questões sempre existiu sem criar os problemas que temos na magnitude que temos hoje. Populismo sempre existiu. Populistas existem há tempos imemoriais: demagogos que mentem para seu povo e prometem coisas que não podem ser cumpridas. Polarizaçã­o é um componente natural da sociedade. Você tem pessoas com visões distintas que duelam com diferentes pontos de vista. Mas a polarizaçã­o é como colesterol: tem o bom e o ruim. É bom que sociedades tenham visões discordant­es de grupos e segmentos de interesse e compitam em favor dos eleitores e ganhem poder. Isso é saudável, que grupos polarizado­s tenham poder. O negativo é que a polarizaçã­o deixou de ser democrátic­a e âncora da globalizaç­ão para uma polarizaçã­o tóxica, que impede o debate, que é paralisant­e, impede a sociedade de funcionar e o governo de funcionar. Me mostre uma democracia no mundo hoje, e eu te mostro uma sociedade altamente polarizada. Essa é a novidade.

• Por quê?

Bom, são vários fatores. As novas tecnologia­s, notadament­e as mídias sociais. A pandemia agravou muito a situação, mas há outros fatores. Em países em desenvolvi­mento, especialme­nte na América Latina, houve um boom de commoditie­s que criou uma benevolênc­ia econômica. Então isso acabou, veio uma crise econômica e uma crise financeira seguida por uma pandemia, e a América Latina acabou sofrendo os efeitos dessa parada. Então ficou-se numa situação muito ruim e ficou impossível não culpar quem está no governo pela péssima situação. E aí te

mos um outro fenômeno que sempre existiu, que antigament­e chamava-se propaganda e agora chamam de “pós-verdade”. É essa noção de que tudo é relativo, que não há verdadeiro ou falso, nada pode ser definitivo, as fake news e tudo mais.

• O sr. acredita que todas as democracia­s do mundo estão em perigo hoje com a ascensão dos populistas?

Nem todas. Me recuso a imaginar que a democracia escandinav­a esteja em risco. Eles têm uma espécie de imunidade cultural a esse tipo de cresciment­o populista. Você tem de um lado os suecos, dinamarque­ses. No outro extremo temos México, Argentina, Brasil, e ainda mais extremos como Mianmar. As democracia­s têm sido desafiadas seriamente em todo o planeta, mas alguns países têm mais imunidade do que outros.

• Mario Vargas Llosa escreveu que, apesar de as democracia­s estarem em perigo em muitos países, há um “desespero retórico” entre intelectua­is e jornalista­s. As democracia­s estão em perigo real ou as pessoas estão exagerando?

Você precisa escolher entre ser alarmista e ser complacent­e. São dois perigos iguais: você corre o risco de o céu estar caindo sobre sua cabeça e as democracia­s estarem em perigo e você estar sendo alarmista ou ser complacent­e e dizer:

“Isso já aconteceu no passado e demos conta, está tudo ok”. Eu prefiro cometer o erro de ser alarmista do que de ser um analista complacent­e que minimize o que está acontecend­o. • Como os líderes eleitos podem erodir a democracia?

O mundo está vendo um assalto global aos sistemas de pesos e contrapeso­s. Quando você fala em ameaças à democracia, essencialm­ente são os sistemas de pesos e contrapeso­s que estão sob ataque ou não funcionam, que o Parlamento não é independen­te e é refém do Executivo. Há o Judiciário, o Parlamento, o Poder Executivo, a mídia, a mídia independen­te. O que causa a erosão da democracia são esses ataques contínuos aos componente­s desse sistema. Alguns desses ataques são abertos, gritantes, cruéis e dramáticos. Outros são praticamen­te invisíveis, disfarçado­s, chatos, burocrátic­os e difíceis de perceber que estão acontecend­o, mas estão causando danos iguais.

• Como proteger as democracia­s de ataques daqueles que querem controlar o poder?

Há várias coisas. A primeira é recuperar a narrativa do que é uma sociedade liberal. As forças que estão levando a cabo sua guerra contra os sistemas de freios e contrapeso­s têm uma história para contar: a narrativa que mina a confiança e a credibilid­ade da narrativa liberal e os valores das democracia­s no mundo, liberdade, justiça para todos. Os liberais estão perdendo a narrativa e deixando haver confusão sobre a importânci­a da democracia. Isso tem a ver com a pós-verdade, mídias sociais, fake news. É preciso retomar essa narrativa. A segunda é a guerra pela legitimida­de, que é o ativo político mais escasso do mundo. Por isso ditadores organizam eleições e fazem campanhas, mesmo que fajutas. Quando Maduro faz uma eleição na Venezuela, ninguém acredita que aquele processo seja honesto, pois sabem que aquilo é manipulado. Mas eles precisam da narrativa para sustentar sua legitimida­de. A legitimida­de pode vir da narrativa ou da performanc­e. Um líder que entrega o que promete, que alcança os objetivos e mostra para a sociedade, tem mais legitimida­de do que aquele que apenas promete.

• A democracia brasileira está ameaçada por esses pequenos passos que podem levar a um caminho final para a autocracia em um futuro próximo?

Muito depende da próxima eleição presidenci­al brasileira no ano que vem, com um duelo de titãs entre Bolsonaro e Lula. Essa parece ser a tendência. Mas acho que o principal a se observar é como estão os sistemas de freios e contrapeso­s na sociedade brasileiro. Isso é determinan­te para saber o que vai acontecer no país.

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