Na várzea, Santa Marina luta para não perder o campo
Justiça. Clube de 108 anos terá de devolver sede para multinacional em ação de reintegração de posse na Água Branca
Quando empurra o portão azul do número 883 da avenida Santa Marina, Francisco Ingegnere abre caminho para um passado que ainda pulsa. A sede do Santa Marina Atlético Clube, um time da várzea inaugurado em 1913, ganha fôlego novo com uma escolinha de futsal e as peladas do fim de semana no campo de terra. Tudo isso – passado e presente – deve acabar em breve.
O clube está perdendo uma longa disputa judicial com a multinacional Saint-Gobain, dona da área. No dia 5, o Tribunal de Justiça de São Paulo negou um recurso do clube contra a integração de posse do terreno pedida pela multinacional. O prazo para desocupação é 7 de agosto. Ainda existem chances remotas com recursos no próprio TJ e no Superior Tribunal de Justiça, mas o Santa Marina provavelmente vai deixar de existir. A área de 9.236 metros quadrados, nas proximidades do câmpus da Unip, na avenida Marquês de São Vicente, vale cerca de R$ 86 milhões.
Como presidente, Francisco coça os cabelos pensando no que vai fazer com uma das salas de troféus mais bonitas da cidade, além de paredes forradas com fotos que percorrem mais de 100 anos de história. Na primeira passada de olhos, o Estadão encontra um troféu grande com a data 1943 quase apagada. É o título da Liga Esportiva Comércio e Indústria (Leci). Uma foto de Pelé, autografando uma camisa branca para o time, fica logo na entrada. Orgulho.
“Acho que vamos guardar os troféus em várias casas. Vão ficar espalhados. Se ficar aqui, tudo vai se perder”, lamenta.
Fundado em 15 de agosto de 1913, o Santa Marina é um time amador de origem operária registrado pelos trabalhadores da antiga Companhia Vidraria Santa Marina, gigante da área de vidros domésticos e produtos de porcelana e cerâmica. Se bobear, ainda existem louças com as marcas Santa Marina, Duralex e Marinex na casa de muita gente. Nos anos 1960, a Santa Marina se associou ao grupo francês SaintGobain, um dos maiores fabricantes de vidro plano no mundo.
O espaço era uma opção de lazer e prática desportiva para os funcionários. Os trabalhadores viviam ali, nos conjuntos residenciais Vila Nova e Vila Velha. Nas horas vagas, jogavam futebol e praticavam boxe. Em 1960, o futebol chegou a disputar a divisão especial da Federação Paulista de Futebol, mas a campanha foi ruim. Não deu para se manter na elite paulista.
Hoje, o clube tem 60 alunos na escolinha de futebol. Antes da pandemia, eram 120. O clube cede o espaço para ações sociais de seis abrigos de crianças em situação de vulnerabilidade. Nos fins de semana, jogam ali equipes amadoras, como o Garrafão, só de veteranos.
A exemplo do que acontece com a grande maioria dos times amadores, a situação financeira é difícil. A mensalidade da escolinha é de R$ 60. O campo é alugado por R$ 400 mensais. Os custos, com água e luz, giram em torno de R$ 1.200 por mês.
O contrato de comodato, que permitiria o uso do terreno por dez anos, foi assinado em 2009. Para o advogado Caio Marcelo Dias, representante do clube, o Santa Marina já teria direito adquirido de usucapir após 15 anos de uso pacífico e ininterrupto”, entende o especialista do escritório Dias Advocacia.
A multinacional pediu a reintegração de posse do terreno em duas ocasiões. Uma foi negada, a outra teve sucesso. A 2.ª Vara Cível do Fórum da Lapa estabeleceu 120 dias para a desocupação voluntária do terreno. O prazo termina dia 7 de agosto. A ação paralela por usucapião (tempo de ocupação) não deve ser julgada a tempo.
Em nota, a Saint-Gobain informa que “sempre esteve disponível e aberta ao diálogo com o Santa Marina a fim de encontrarem a melhor solução para ambas as partes em relação ao imóvel”. Também informa que “ao longo desses anos, sempre atuou de maneira transparente junto às lideranças do Clube para buscar alternativas na resolução do tema”.
Francisco Ingegnere
PRESIDENTE DO SANTA MARINA ‘Acho que vamos guardar os troféus em várias casas. Se ficarem aqui, eles vão se perder’