GENOCÍDIO REFLEXÃO SOBRE O FIM INDÍGENA
Micheliny Verunschk, escritora A premiada escritora Micheliny Verunschk fala sobre seu livro ‘O Som do Rugido da Onça’
“Empresta-se para Iñe-e essa voz e essa língua, e mesmo essas letras, todas muito bem-arrumadas, dispostas umas atrás das outras, como um colar de formigas pelo chão, porque agora esse é o único meio disponível. (...) Usa-se essa voz e essa língua porque é com ela que se faz possível ferir melhor”, escreve a pernambucana Micheliny Verunschk em seu novo livro O Som do Rugido da Onça.A narrativa parte da perspectiva de uma menina indígena do povo miranha, que na vida real foi levada para a Alemanha por dois cientistas depois de ter sido dada como presente por seu pai no século 19.
Antes de ser raptada e após se perder na mata, a garota havia sido “onçada” ainda pequena. Ou seja, fora encontrada ilesa à margem de um rio e resguardada por Tipai uu, uma enorme onça. Para o pai, isso queria dizer que a menina havia se juntado em um pacto com a inimiga: “Ela um dia se transforma e nos devora a todos”. No entanto, não é isso o que acontece, pois quando o zoólogo Johann Baptist von Spix e o botânico Carl Friedrich von Martius a colocam em uma embarcação junto com plantas, animais e outras sete crianças indígenas, Iñe-e se vê desprotegida.
Durante a viagem no oceano, a menina depara com a taxidermia de animais (que soam a ela como um desencantamento), teme que sua alma seja roubada quando gravam seu retrato sobre uma pedra e vê as crianças morrerem até sobrarem apenas ela e o menino Juri, que “teria sucedido ao pai na liderança” de seu povo caso “sua família não tivesse caído em desgraça na guerra contra os miranhas”, e, é claro, caso não tivesse sido trocado por dois machados. Enquanto tenta chamar a onça, Iñe-e “sentia que morria em cada morte que testemunhava” e percebe as crianças atadas aos cientistas, que “sem saber, arrastavam os fios daquelas almas aonde quer que fossem ou estivessem”.
Tragédia. O livro de Verunschk, que começou a ser escrito em 2017, é bem-sucedido exatamente no ato de colocar o leitor sob a perspectiva dos sofrimentos e da impotência da criança miranha, de forma a trazer humanidade e chamar a atenção para esse episódio até então visto como sem importância ou corriqueiro no passado brasileiro. Segundo a autora, tudo começou justamente quando ela viu as litografias denominadas Miranha e Juri na exposição Coleção Brasiliana Itaú. “Eu já conhecia essas imagens de algum lugar, mas o impacto de vê-las pessoalmente no original foi o mesmo de quando você encontra alguém que já conhece”, explica em entrevista ao Aliás.
Onça. Quando questionada sobre o motivo de ter escolhido esse animal para selar o pacto com Iñe-e, a escritora responde que no Brasil há todo “um sistema cultural que gira em torno da onça” e que se faz presente no vestuário feminino, mas também no artesanato; na Banda de Pífanos de Caruaru, “que tem a briga do cachorro com a onça”; no amigo da onça ou quando dizemos que alguém “virou onça”. “Essa figura surge como um signo acessível de poder, de afirmação, de resistência e de luta”, informa. Nesse sentido, associar Iñe-e a uma onça talvez seja a forma de Verunschk finalmente lhe dar força e voz, embora na maior parte da narrativa o leitor se ressinta pelo fato de uma figura tão forte não ter os meios de impedir as atrocidades do homem branco ou de dar poder a Iñe-e.
Sem dúvidas, a maior marca da obra são as vozes potentes que se apresentam durante a história e que dão margem para o surgimento da narradora da última parte do livro: uma onça cujo rugido atravessa os tempos. Nesse sentido, a capa do livro também merece atenção. A ilustração é do roraimense Jaider Esbell, um artista, escritor e produtor cultural indígena da etnia macuxi. De acordo com a escritora, em uma de suas mirações durante o uso da ayahuasca, ela viu uma árvore que “estava cheia de onças de várias pelagens”. Dessa forma, a capa se torna a expressão da polifonia na narrativa de Verunschk, atributo também presente no seu livro Nossa Teresa: Vida e Morte de uma Santa Suicida (Patuá, 2014), que ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura em 2015.
O som do rugido da onça é, por fim, o som da leitura deste livro: “Quando tu precisar, me chama e eu chegarei, quente, vinda pelo cheiro do teu suor, e te pego e te levo pra longe do que te amofina. Tu há de me chamar no escuro dentro de tu, me chamando assim, Tai-tipai uu, repetindo assim, Tai-tipai uu, eu-Onça Grande. (...) Tipai uu, eu venho. Venho e te dou o que é teu por direito, tua roupa de onça”.
Leia trechos da entrevista com a autora ao Aliás:
• Como foi a pesquisa e o ato de se colocar no lugar de Iñe-e?
O ponto de partida da pesquisa foi um livro da professora Karen Macknow Lisboa, A Nova Atlântida de Spix e Martius,
no qual ela fala rapidamente dessas crianças. Procurei também o livro que os cientistas escreveram a quatro mãos, Viagem pelo Brasil 1817-1820.
Quando eu comecei a escrever, esse livro era outro, porque parti do ponto de vista dos naturalistas. Eu já tinha avançado bastante, mas sempre insatisfeita com o que estava escrevendo. E uma amiga achou alguns documentos (em Munique, Alemanha) que foram importantíssimos. A partir daí, comecei a entender que não era aquela a história que eu queria contar e joguei fora o que tinha feito. Quando comecei de novo, deparei com a dificuldade muito real de saber quem era minha narradora. Eu tinha a sensação de que ela fugia de mim; que toda vez que eu tentava me acercar dessa narradora, ela me escapava. E a minha dificuldade eu atribuía ao fato de ela ser uma criança do século 19, de um povo da Amazônia e de ela não falar o português, o nheengatu ou o alemão. Ela estava num lugar de silenciamento muito profundo e não adiantava eu querer falar por ela. Eu acho que um dos grandes problemas da literatura é esse falar pelo outro. Eu não acredito em falar pelo outro, acredito em escutar o que o outro tem a dizer. E naquele momento não conseguia escutar a minha narradora.
• Como se desenvolveu a investigação histórica a partir desse ponto?
Eu tive que fazer uma pesquisa exaustiva, mas não nos moldes clássicos. Tive de subverter essa noção da pesquisa histórica. Então, fui para narradores indígenas e escutei os diferentes povos nativos – como eles se colocam, o que têm a dizer. E me pareceu que, para encontrar essa narradora de uma forma mais honesta, eu precisaria entrar em outro mundo, em outra lógica e forma de compreensão da vida, não essa na qual eu e vocês estamos inseridos, que é a lógica ocidental e racional. Eu nunca havia experimentado a ayahuasca, nunca havia tomado o chá. Fui numa situação de ritual muitíssimo respeitosa, e o mestre que conduzia o ritual me disse que eu poderia ter duas perguntas para fazer ao chá. Eu perguntei: “Quem é a minha narradora e que relação eu posso estabelecer com ela?”. Por conta dessa aproximação que o chá permitiu, me senti muito próxima da narradora.
• A obra trabalha muito com a voz com que Iñe-e nasceu, a da menina morta, a da onça, a da natureza de modo geral. No começo e no fim a narradora se ressente de pegar emprestada a nossa língua para contar essa história. Por que existem essas diferentes vozes no livro e de que forma elas conversam com o distanciamento que se faz entre o leitor e a narrativa?
Eu acredito que na vida somos continuamente atravessados pelas vozes do mundo. E eu acredito que a gente vive realmente imerso nessa polifonia. Algumas pessoas têm o ouvido mais atento e eu acho que o mundo está continuamente respondendo a você, mas não necessariamente com esse modo de interlocução ao qual nos acostumamos. Então, quando eu coloco essas diferentes vozes no som do rugido da onça é porque acredito que é assim que o mundo é. Da mesma forma, acredito que os diferentes tempos se cruzam, se atravessam, se friccionam sempre. E sobre o sentido no qual você pergunta, entre leitor e narrador, essa narradora está ali como alguém que guia você por um outro mundo e ela estabelece os limites: “Você está aí e eu estou aqui, me siga!”.
• No começo do livro, você fala do processo de desencantamento dos bichos e Iñe-e se pergunta se a viagem é o desencantamento dela. Em outro momento, vemos o captor de seu retrato “muito pronto para roubar a sua alma”. A escrita também é um processo de desencantamento?
Eu acho que a escrita pode ser. Se eu tivesse escrito aquele primeiro livro que não dava voz a todos esses seres e dava voz apenas aos captores, a escrita serviria, sim, como um instrumento de desencantamento. Mas eu acredito que a escrita, assim como a fala, como a oralidade – e talvez a oralidade ainda mais do que a escrita –, tem o poder de reorganizar ou de organizar o mundo a partir do caos, ou de dar outro sentido a um mundo que está extremamente frágil e em dissolução. Nesse sentido, acho que a poesia e a prosa (mas acho que a poesia em maior grau) nos tiram desse estado de desencantamento. Elas nos devolvem a capacidade de resistência e de insurgência. Quando a palavra não serve a isso, é muito triste.
• No final do livro, a narradora relata massacres que os povos indígenas sofreram ao longo dos anos, até durante a pandemia. Qual a importância de falar sobre o tema do seu livro?
Esse tema nunca deixou de ser urgente. Com o aprofundamento da crise política no Brasil e a pandemia, esses povos mais do que nunca se veem ameaçados. E a circularidade cruel dessa história de genocídio, de povos que são continuamente dizimados, ela nos diz que não é um assunto para deixar para depois. Que não é um assunto para a gente pensar quando as coisas melhorarem, porque está intrinsecamente ligado à crise que vivemos já há algum tempo. Pensar na transposição das águas sem pensar nos povos e sistemas ecológicos que vão ser afetados é uma grande estupidez. Pensar um Brasil que não esteja ao lado dos inúmeros povos com suas histórias, cosmologias e necessidades é suicídio.
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É JORNALISTA E ESCRITORA, AUTORA DE ‘O ÚLTIMO TIRO DA GUANABARA’ (REFORMATÓRIO) E COAUTORA DE ‘CORAÇÕES DE ASFALTO’ (PATUÁ)