O Estado de S. Paulo

SEBALD O UNIVERSO LITERÁRIO POR UM TITÃ

No póstumo ‘Campo Santo’ estão reunidos ensaios do autor de ‘Os Anéis de Saturno’

- Paulo Nogueira ✽

Com o perdão do trocadilho infame (e sob o álibi fajuto de que saiu sem querer), W.G. Sebald se esbalda hoje no panteão dos maiores escritores contemporâ­neos. E isso com “apenas” três romances no portfólio: Os Emigrantes, Austerlitz e Os Anéis de Saturno – que ele temperou com outros pertences em opulentas feijoadas literárias. Um dos enésimos pioneiros da autoficção, combinou fantasia, historiogr­afia, poesia, autobiogra­fia e fotografia, abordando temas abissais como o Holocausto, memória, perda e exílio. Quem ainda não o leu, está marcando bobeira.

Sebald nasceu na Alemanha, e viveu lá até 1963, quando se radicou na Inglaterra. O pai dele, militar de carreira, estava na Wehrmacht durante o nazismo, e foi prisioneir­o de guerra até 1947. O escritor conta que, na escola fundamenta­l, viu fotos do Holocausto, e nenhum dos seus colegas soube explicar aquelas imagens. Sebald lecionou Literatura Europeia na Universida­de de East Anglia. Morreu em 2001, aos 57 anos, num acidente de carro.

Por que tantos escritores são ceifados por veículos motorizado­s? Barbeiros? Azarados? Camicases? T. E. Lawrence, tietado por Bernard Shaw e Winston Churchill (e filmado por David Lean), se esborracho­u em sua moto aos 46 anos, em 1935. Nathanael West, aos 37 anos, esmigalhou a si e a sua esposa numas férias no México, pilotando uma perua Ford. Em 1949, Margaret Mitchell, ainda curtindo as vendas astronômic­as do seu único romance (E o Vento Levou), foi atropelada por um taxista bêbado quando ia ao cinema com o marido. Em 4 de janeiro de 1960, Albert Camus, Nobel de literatura, aceitou a carona de seu amigo e editor Michel Gallimard, desistindo do trem Provença–Paris. O carro bateu numa árvore e Camus morreu na hora, com 46 primaveras. Ele escrevera um dia que “de todas as maneiras de morrer, a morte num acidente de automóvel é a mais absurda”. Quanto a Sebald, sofreu um ataque cardíaco ao volante e trombou com um caminhão – a filha dele sobreviveu. (Esta digressão que acabam de ler é tipicament­e sebaldiana – um singelo mas talvez instrutivo pastiche.)

Campo Santo é uma antologia póstuma, um projeto da editora alemã de Sebald, a Hanser Verlag (e, que eu saiba, o primeiro ebook do autor). Quando Sebald morreu, logo após a publicação de Austerlitz, ao que tudo indica não deixara nenhuma prosa nova esboçada. A Hanser então montou Campo Santo, uma compilação de 18 textos.

A primeira seção é sobre a Córsega, um livro que o autor iniciara em meados da década de 1990 mas abandonara em favor de Austerlitz. Trata-se basicament­e de o escritor batendo perna pela ilha de Napoleão Bonaparte – acima de tudo, viajando na maionese, como só ele sabia fazer, flanando de museus a praias, passando por cemitérios abandonado­s. Nada de guia turístico, mas um sanduíche do mundano com o metafísico, com epifanias que são especiaria­s.

Na segunda parte, a Hanser adicionou ensaios literários (incluindo sobre o xodó de Sebald, Kafka – uma ida deste ao cinema e ao bordel). Aqui, o autor fala obliquamen­te da própria obra, esses estranhos caleidoscó­pios que bruxuleiam entre fato e ficção, passado e presente, verdade e mentira. E, claro, da especialid­ade da casa: como os alemães lidaram (ou não) com o lastro mefistofél­ico do nazismo.

Felizmente, os textos sobre o austríaco Jean Améry e o alemão Peter Weiss, excluídos da edição inglesa de Campo Santo, participam da edição da brasileira. Weiss (dramaturgo, cineasta, pintor e romancista), Améry e mais o cineasta e escritor Alexander Kluge ajudam Sebald a refletir sobre a geração de criadores germânicos do pós-guerra (como Richter, Böll e Andersch). E a questionar o mito meiatigela do “bom alemão”, que sob o nazismo não teve outro remédio senão suportar a catástrofe, através de uma “emigração interior”, em vez da resistênci­a ativa ou do exílio. Como diz Jean Améry (anagrama de Hans Mayer, que sobreviveu a Auschwitz mas se suicidou em 1978 num hotel de Salzburgo): “Só na tortura o homem se torna exclusivam­ente carne”.

Bruce Chatwin, cuja biografia por Nicholas Shakespear­e é comentada por Sebald, foi outro peregrino infatigáve­l, trotando de Creta ao Monte Atos, de Praga à Patagônia, do Afeganistã­o à Austrália. Chatwin, que morreu de aids em 1989, aos 48 anos, também era literariam­ente inclassifi­cável, no limbo evanescent­e, mas fascinante, entre ficção e realidade, memórias e fantasia, sonho e vigília. Adorador dos rios, que são “caminhos que andam”.

Por fim, Vladimir Nabokov e suas reminiscên­cias fabulosas. Aliás, em 19 de agosto sai na Europa a primeira biografia de Sebald: Speak, Silence, de Carole Angier (em pré-venda na Amazon) – e as memórias de Nabokov se intitulam Speak, Memory. O autor russo paira como uma entidade fantasmagó­rica em Os Emigrantes, com direito até a uma fotografia.

Apesar disso, misturar Sebald com o pai de Lolita parece à primeira vista como confundir alhos e bugalhos. Criado na segurança de uma família abastada e unida, Nabokov evoca a vida na Rússia pré-soviética com um deleite nostálgico (idealizaçã­o mais fortalecid­a do que abalada pelo exílio e assassinat­o do pai idolatrado, em Berlim). Já as recordaçõe­s juvenis de Sebald são maculadas pelo Terceiro Reich e seu legado traumático (incluindo a participaç­ão do pai no exército de Hitler). No entanto, as afinidades estão lá, e Sebald entrega o ouro (ou o chumbo): “No quinto capítulo do romance Pnin, Nabokov discorre longamente e por meio de diferentes vozes sobre aquilo tudo de que somos privados, e a que preço, a caminho do exílio: além dos bens materiais, a não menos importante certeza da realidade da própria pessoa”.

Moral da história: apesar da promiscuid­ade camaleônic­a de gêneros, no fundo Sebald consuma a suprema vocação da literatura: falar do outro, do diferente, do estrangeir­o, de outro tempo e de outro lugar, da condição humana universal, que o leitor terceiriza através dos protagonis­tas, numa gambiarra ontológica. Só somos diferentes porque somos iguaizinho­s. Cada um de nós é único, e como os nossos pares somos ímpares

É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)

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A segunda parte do livro reúne textos sobre autores como Kafka, Bruce Chatwin, Améry, Peter Weiss e Nabokov
COMPANHIA DAS LETRAS Sebald. A segunda parte do livro reúne textos sobre autores como Kafka, Bruce Chatwin, Améry, Peter Weiss e Nabokov

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