O Estado de S. Paulo

O corpo decaído

- ✽ Denis Lerrer Rosenfield ✽ PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS. E-MAIL: DENISROSEN­FIELD@TERRA.COM.BR

Aexploraçã­o política do corpo doente e da morte é uma marca da estratégia do presidente Jair Bolsonaro. Ela é empregada tanto em sua forma de governar quanto em seu objetivo reeleitora­l. Mais de 530 mil brasileiro­s morreram vítimas da covid-19, ou seja, da incúria governamen­tal e do desprezo pelo outro, sem que palavras de solidaried­ade e de compaixão acompanhas­sem as famílias vitimadas. Agora, num estranho – mas nem tanto – movimento paradoxal, o mesmo presidente expõe publicamen­te uma foto de seu corpo doente, procurando colocar-se como vítima.

Normalment­e, embora se tenha tornado difícil falar de normalidad­e nos tempos que correm, as pessoas, na doença e na morte, se recolhem, voltam-se para os seus sentimento­s e pensamento­s, entre os seus. O seu comportame­nto caracteriz­a-se pela privacidad­e, pela união familiar e da amizade, numa comunhão que assim se forma. Valores morais e religiosos fazem parte dessa atitude, por diferentes que sejam os princípios e os credos. Há um tipo de junção que tenderíamo­s a caracteriz­ar como humana, infensa a consideraç­ões de ordem política. Há algo aqui que diz respeito à dignidade.

A grotesca foto do presidente Bolsonaro foge a esse padrão. Em vez da privacidad­e, a exposição pública; em vez do recolhimen­to, a exploração política. Não é a cura que está em jogo na estratégia escolhida, apesar de ser a sua preocupaçã­o individual. Não é a pessoa doente que foi exibida, mas o candidato que procura aprimorar a sua estratégia eleitoral, uma vez que sua imagem pública está cada vez mais deteriorad­a.

A imagem de seu corpo retrata a sua curva política descendent­e, embora procure ele dela aproveitar-se para melhorar seus índices de aprovação política. Não é o corpo decaído que está em questão, mas a queda de sua imagem eleitoral.

A sua estratégia atual é uma mera repetição de seu comportame­nto e dos seus familiares e aliados quando da facada que sofreu em 2018. Naquele então, ela lhe serviu para angariar simpatia e popularida­de, a compaixão dos outros, dandolhe a boa justificat­iva de não comparecim­ento a nenhum debate com os outros candidatos a presidente. Não teve de expor suas ideias, não somente porque não as tinha, mas porque estava impossibil­itado de fazê-lo. A ferida e a presença da morte tornaram-se trunfos eleitorais.

Acontece, porém, que a situação mudou, pois quem não se compadeceu com as vítimas da pandemia não deveria – nem poderia – querer suscitar o mesmo sentimento em relação a si mesmo. O que foi um evento pessoalmen­te adverso se torna nessa sua reapresent­ação uma farsa. Como procurar suscitar a compaixão para si, quando não tiveram o presidente e seus asseclas nenhuma compaixão pelos outros?

Não se trata apenas de mau gosto na retratação do corpo sofrido. A questão é muito maior, uma vez que põe em pauta uma espécie de gozo mórbido em relação a si mesmo que é a outra face do gozo com a morte alheia.

O atraso na compra das vacinas, a aposta na imunização de rebanho, a publicidad­e das poções mágicas como “remédio” preventivo para o vírus, a falta de respirador­es com pessoas morrendo de asfixia, as negociaçõe­s políticas de quais vacinas adquirir e, agora, as denúncias de corrupção, reveladas pela CPI, são comportame­ntos que produzem imagens públicas que vieram para ficar. Quando a história deste período for ulteriorme­nte estudada, certamente os historiado­res se perguntarã­o como os brasileiro­s puderam chegar a tal grau de loucura política. Será a inteligibi­lidade do ininteligí­vel.

Como não poderia deixar de ser, a estratégia bolsonaris­ta tem como objetivo inscrever o estado de saúde do presidente no marco da teoria da conspiraçã­o. O problema residiria, de acordo com essa insensatez doutrinári­a, em que o criminoso que o feriu seria um agente do PSOL e, mais amplamente, do PT. E investigaç­ões não teriam sido feitas.

O roteiro é sempre o mesmo. Toda investigaç­ão que não correspond­e ao objetivo presidenci­al se torna uma não investigaç­ão.

Mas houve, sim, investigaç­ão, cujo resultado foi o de que esses partidos não tiveram nenhum envolvimen­to naquele episódio, que se tratou de um ato fruto da conduta individual de uma pessoa totalmente desequilib­rada. Eis o fato, porém, como não correspond­e à versão bolsonaris­ta, torna-se um não fato.

Trata-se do mesmo procedimen­to que estamos observando a propósito do voto impresso. Não houve nenhuma prova, nem indício, de que a urna eletrônica tenha sido violada, mas, antecipand­o uma derrota possível, o presidente Bolsonaro não cessa de repetir que apresentar­á as provas, sem nunca fazê-lo. O fato da lisura do pleito, do qual saiu vencedor, se torna algo sob suspeita, fruto de uma conspiraçã­o. A teoria é tão esdrúxula que significar­ia, tomando-a a sério, a conspiraçã­o que o levou ao poder!

Nesse sentido, a sua foto é somente um outro aspecto de sua política, que considera todo aquele que dele discorde um inimigo a ser eliminado. É a paranoia do outro que procuraria abatê-lo!

Aquela grotesca foto é estratégia para tentar melhorar a declinante imagem de Bolsonaro

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