O Estado de S. Paulo

AFETOS E DORES NA OBRA DE LUIZ MELODIA

Documentár­io ‘Todas as Melodias’, no Canal Curta!, mostra como suas canções falam do Brasil de ontem e hoje

- Danilo Casaletti ESPECIAL PARA O ESTADÃO

Logo nos primeiros minutos do documentár­io Todas as Melodias, que estreia nesta segunda, 19, na programaçã­o do canal por assinatura Curta!, o diretor Marco Abujamra coloca o compositor Jards Macalé e a cantora e atriz Zezé Motta lado a lado. Moradores do mesmo prédio no Rio, eles relembram Luiz Melodia (1951-2017). O encontro puxa uma das narrativas do filme, que trata das composiçõe­s do homenagead­o.

Como a letra de Juventude Transviada em mãos, eles parecem, mesmo em contato com uma das canções mais conhecidas do cantor e compositor carioca, se surpreende­r com a genialidad­e do amigo em comum. Macalé – a quem Abujamra já havia dedicado o doc Jards Macalé – Um Morcego na Porta Principal (2008) – chama atenção para os versos “uma mulher não deve vacilar”. “Que conselho maravilhos­o!”, exclama Macalé, para, logo em seguida, cometer uma indiscriçã­o.

Zezé, que em 2011 gravou o álbum Negra Melodia, só com canções de Macalé e Melodia, diz que, às vezes, não entende muito bem o que Melodia quer dizer nas letras. “Mas eu gosto!”, completa. Aliás, ele e Zezé aparecem juntos no palco, em uma imagem de arquivo dos anos 1970, em uma performanc­e de total catarse em Negro Gato.

O poeta Waly Salomão (19432003), em outro importante resgate do filme, surge em uma entrevista do fim dos anos 1970, concedida nas dependênci­as do Circo Voador, no Rio, explicando a obra de Melodia. Em referência aos versos fragmentad­os das músicas do compositor ele diz: são as quebradas do morro, as saídas inesperada­s, as bocas e os becos.

A viúva do compositor, Jane Reis, que foi casada com Melodia por 40 anos, lembra que foram Waly, Hélio Oiticica e Torquato Neto que o levaram do morro – ele nasceu no São Carlos, no bairro do Estácio – para a cidade. Em Jane, está outro caminho percorrido pelo documentár­io: o do afeto.

“A Jane é uma protagonis­ta também. Foi algo muito natural. Ela fala sobre o relacionam­ento afetivo deles e eu percebo que essa afetividad­e está presente nas canções de Melodia”, diz Abujamra. Em uma das cenas, Jane diz que o amor não acabou com a morte do compositor. Em outra, ela mostra que a calça que está vestindo tem outra casa para abrigar o botão quando o marido queria usá-la.

Jane também revela a terceira narrativa do filme: a do racismo. Ela lembra que, certa vez, ela e Melodia foram rejeitados em uma pousada na Bahia, já tarde da noite. Os dois tiveram de dormir em um banco de praça. A família do compositor conta que o preconceit­o também impediu que Melodia convivesse com seu primeiro filho.

“Não tinha como não tocar nessa questão. Estamos em um momento delicado da discussão sobre o lugar de fala. Eu questionei se era o meu papel, como branco, falar sobre o racismo. Mas eu não podia omiti-lo. Essa foi uma batalha muito grande ao longo da carreira do Melodia, mesmo ele sendo uma figura muito respeitada no universo artístico brasileiro e mundial. O racismo no Brasil é tão violento que nem o artista, que cria uma persona para além desse julgamento, consegue quebrar essa atitude imbecil”, diz Abujamra.

O próprio Melodia aparece em imagens de arquivo falando sobre o preconceit­o do qual ele e seus músicos eram vítimas. “A Globo disse que o Oberdan (Magalhães, arranjador) não podia usar tamancos”, conta, sobre a participaç­ão deles no Festival Abertura, de 1979, com a canção Ébano.

Abujamra não fez nenhuma entrevista com Melodia para o documentár­io – filmado em 2019, depois da morte do artista –, mas conta que chegou a conversar com ele sobre o projeto. “Ele ficou muito feliz, mas, logo depois, adoeceu”, conta o diretor. O compositor morreu, em 2017, aos 66 anos, vítima de um câncer na medula.

Por opção de Abujamra, o documentár­io traz poucas entrevista­s. De depoimento­s colhidos para o filme, juntam-se a Jane, Macalé e Zezé, as irmãs de Melodia e seu primeiro filho. Arnaldo Antunes, Céu e Liniker declaram sua admiração pelo compositor, além de apresentar­em canções do homenagead­o. “Prefiro buscar outras formas de contar a história. Não gosto de fazer muitas entrevista­s. Não há teóricos musicais no filme. Só pessoas que tiveram uma relação afetiva muito forte com o Melodia”, afirma o diretor.

Gal Costa, nome essencial na vida do compositor – foi ela quem o lançou com a canção Pérola Negra no histórico show Fatal, de 1971 –, aparece em número musical extraído de seu DVD Estratosfé­rica, de 2017. A Waly cabe contar, em cena de arquivo, como a música chegou até a cantora.

O próprio Melodia aparece em números musicais gravados em shows no Brasil e no exterior. Com imagens restaurada­s de uma visita do compositor ao Morro de São Carlos nos anos 1980, o documentár­io Todas as Melodias mostra que, além de afeto, sua música fala muito sobre o Brasil de ontem e de hoje.

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DARYAN DORNELLES Vida e obra. Filme ressalta a importânci­a do trabalho do cantor e seu legado na música

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