O Estado de S. Paulo

No que você pensa quando corre?

É REPÓRTER DO ‘ESTADÃO’ E OBSERVADOR DA VIDA URBANA

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Nunca tive talento para meditação. Nem sei qual é a sensação de se estar absolutame­nte relaxado. Acho até que respiro errado. Sou tenso.

Não tenho nenhuma chance de alcançar estágios superiores na evolução humana. Nem quero (sacudindo os ombros).

Mas no que você pensa quando você corre?

Eu penso que não tenho um tênis adequado. Penso que poderia dormir mais uma horinha. Ou que vou recuperar todas as calorias que estou queimando na hora do almoço – com um parmegiana indecente e delicioso.

Eu penso em todas as tarefas do dia, nas oitivas da CPI da covid, nos sommeliers de vacina, nas variantes que nos rodeiam, em quem não teve chances de se imunizar e na inutilidad­e do meu próprio exercício.

Eu reparo na máscara de quem está na praça. Eu reconheço uma PFF2 de longe. Eu ponho reparo em quem usa máscara no queixo. Analiso modelo e cor. Eu podia trabalhar como estilista de máscaras. Eu faço críticas mentais a essas pessoas. Penso em coisas terríveis. Xingo mesmo.

Gosto de cães. Mas só de olhar já penso em quais poderiam me morder. Quais deles não comem ração? Quais deles só dormem na cama do dono? Quais deles já destruíram um sofá inteiro? Quais deles seriam eleitores do Jair?

No que você pensa quando você corre?

Às vezes penso que a vida é curta demais para o tanto de coisas que a gente precisa fazer. O que é uma vida plena? Quantas cidades você pode visitar durante o tempo de uma vida? Quantos boletos o meu salário aguenta? Tem alguma bebida que ainda não experiment­ei? Vale a pena viver 100 anos?

Às vezes, penso nas coisas que não vou conseguir experiment­ar no meu tempo de vida. Como deve ser um casamento. Ser casado, como é? Ter filhos? O que é ter um filho e ganhar presentes no Dia dos Pais. Como deve ser marcar um gol no Maracanã. E participar da Olimpíada? Como deve ser pilotar um avião? No que você pensa quando você corre? Tenho dores pelo corpo. O joelho dói um pouco. Ouço o barulho das pedrinhas. As folhas caem. Penso em todos que já amei. Vou para minha infância. Tento cavar a primeira memória. Vou me afundando nessa memória sentimenta­l até chegar ao menino que eu fui. A gente se olha nos olhos. Ele me aponta o dedo. Impossível decifrá-lo. As expectativ­as dele, talvez, fossem muito altas. Paciência. Que nota ele me daria?

Paro. Respiro. Preciso continuar correndo. Quantas voltas ainda preciso dar? Quantas voltas ainda me cabem?

Um pombo me acerta no ombro. Duas vezes.

Mas no que você pensa enquanto você corre?

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