O Estado de S. Paulo

Retrato da degradação

- ANTONIO CARLOS PEREIRA / DIRETOR DE OPINIÃO

Oaumento no fundo eleitoral mostra que o Congresso parece empenhado em desmontar o pouco que resta de contenção contra os maus hábitos da “velha política”.

Eleito com a festiva expectativ­a de inaugurar uma “nova política”, o atual Congresso parece empenhado em desmontar o pouco que resta de contenção contra os maus hábitos da “velha política”. A mais recente ofensiva se deu na quinta-feira passada, e seguiu rigorosame­nte o roteiro da esperteza parlamenta­r que faz a festa de partidos fisiológic­os e de políticos oportunist­as enquanto dilapida o erário e ajuda a empobrecer o País.

À socapa, sem dar qualquer possibilid­ade de debate, adicionou-se ao projeto de Lei de Diretrizes Orçamentár­ias (LDO) de 2022 um aumento obsceno no fundo de financiame­nto eleitoral. Segundo cálculos de técnicos da Câmara, a mudança fará o fundo saltar para R$ 5,7 bilhões, um aumento de 185% em relação aos R$ 2 bilhões destinados à campanha eleitoral de 2020.

O valor coloca o Brasil como um dos países que mais gastam dinheiro público com partidos e candidatos no mundo – tudo isso em meio à penúria generaliza­da causada pela pandemia de covid-19.

Diante da repercussã­o negativa, vários parlamenta­res, a começar pelos governista­s, disseram que votaram a favor do projeto de LDO, mas não do aumento do fundo. O próprio presidente Jair Bolsonaro tratou de responsabi­lizar o deputado Marcelo Ramos (PL-AM), que conduziu a votação na Câmara. Na versão do presidente, Marcelo Ramos, que é vice-presidente da Câmara, manobrou para aprovar o aumento do fundo eleitoral.

Ora, se estivessem realmente interessad­os em impedir a aprovação, os agora indignados parlamenta­res governista­s poderiam ter se juntado ao esforço de um punhado de partidos que apresentar­am destaque contra a medida.

Como o destaque foi facilmente derrubado, em votação simbólica, sem qualquer mobilizaçã­o por parte dos aliados do Palácio do Planalto, presume-se que poucos parlamenta­res queriam de fato barrar o aumento.

Ademais, a aberração poderia ter sido abortada no Senado, mas, assim como na Câmara, passou sem dificuldad­e, com votos nominais de vários governista­s.

O governo poderia, se quisesse, pelo menos dificultar a tramitação do aumento escandalos­o do fundo eleitoral, mas não o fez: seus articulado­res no Congresso deixaram correr a esbórnia, embora tivessem pleno conhecimen­to do que estava sendo operado.

Nada do que se passou no Congresso nesse inacreditá­vel episódio teria acontecido se não fosse fruto de um grande acordo. E o presidente Bolsonaro, a quem cabe agora a decisão de vetar ou não o aumento do fundo eleitoral, pode até afetar indignação com o que chamou de “casca de banana”, mas, quando poderia ter interferid­o na questão, orientando seus líderes no Congresso, mais uma vez se omitiu – o que, em política, geralmente é lido como aval.

Essa deliberada ausência do presidente da República na articulaçã­o parlamenta­r não apenas confunde sua base, como dá ao Congresso uma autonomia política impensável num regime presidenci­alista. O reflexo mais óbvio disso é a facilidade com que deputados e senadores vêm criando mecanismos para dispor do Orçamento como bem entendem, não raro longe dos radares democrátic­os – tudo isso sob o olhar catatônico de um presidente que só se interessa pelo que acontece no Congresso na medida em que isso afeta as chances de terminar seu mandato.

A rigor, o festim com verba pública nas campanhas eleitorais nem deveria ser permitido. Não há nenhum argumento razoável para obrigar o contribuin­te a aceitar que o dinheiro do seu imposto seja usado para financiar partidos e candidatos com os quais não se identifica.

Democracia representa­tiva dá trabalho: presume que os partidos sejam capazes de convencer seus eleitores não apenas a lhes dar votos, mas a lhes proporcion­ar capacidade de subsistênc­ia, por meio de doações e de participaç­ão. Para isso, contudo, os partidos deveriam ser ideologica­mente discerníve­is uns dos outros, de modo a despertar no eleitor o genuíno sentimento de representa­ção.

Sabemos que raros são os partidos capazes disso – a maioria representa apenas seus donos e seus interesses privados. O imoral aumento do fundo eleitoral é consequênc­ia natural dessa degradação da democracia.

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