O Estado de S. Paulo

Infodemia, a outra pandemia que enfrentamo­s

- ✽ Helyn Thami, Rebeca Freitas e Maria Cristina Franceschi­ni

Vivemos duas pandemias em uma: a da covid-19, com ritmo lento de vacinação, e a transmissã­o acelerada da desinforma­ção. Define-se infodemia como o fluxo excessivo de informaçõe­s sobre um dado assunto oriundas de fontes não confiáveis, sobretudo nas redes sociais. Aumentam os relatos de consequênc­ias negativas provocadas por esse tipo de conteúdo.

Pela primeira vez uma pandemia se verifica no contexto de uma sociedade hiperconec­tada. Com a expansão da internet e das redes, as informaçõe­s espalham-se cada vez mais rapidament­e. Em 2019 a internet já estava em oito de cada dez domicílios do Brasil, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatístic­a (IBGE) e da pesquisa Datasenado. E a cada cinco brasileiro­s, quatro usavam o Whatsapp como fonte de informação.

A dimensão da capilarida­de das notícias falsas na saúde foi objeto de estudo publicado no American Journal of Tropical Medicine and Hygiene, que analisou mais de 2 mil publicaçõe­s sobre a pandemia em redes sociais: apenas 9% traziam informaçõe­s verdadeira­s. No Brasil, segundo o Ibope, 67% dos brasileiro­s, quando expostos a dez informaçõe­s falsas sobre vacinas, acreditara­m em pelo menos uma.

O fenômeno pode explicar, ao menos em parte, a queda na disposição dos indivíduos de se vacinar contra a covid19 – caiu de mais de 70% para menos de 50%, segundo estudo sobre vacinação e pandemia em vários países do mundo. Os dados atuais reforçam esse achado: só no Brasil, mais de 1,5 milhão de pessoas não retornaram para a segunda dose.

A infodemia não se traduz apenas em desconfian­ça, mas também em efeitos adversos para a saúde. Nos Estados Unidos, os casos de envenename­nto por desinfetan­tes de uso doméstico aumentaram substancia­lmente depois de o então presidente Donald Trump defender seu uso como “medicament­o” contra a covid-19. Algo semelhante aconteceu por aqui: depois de inúmeros discursos e publicaçõe­s em redes sociais do presidente Jair Bolsonaro defendendo o chamado “kit covid”, médicos observaram aumento da fila de transplant­e de fígado após o uso dos medicament­os sem eficácia comprovada desse kit. Houve também três mortes por hepatite relacionad­as ao uso das mesmas substância­s.

Outra consequênc­ia do discurso negacionis­ta e das fake news está ligada ao próprio alastramen­to da doença. Uma nota técnica do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps) mostrou relação positiva entre apoio eleitoral ao presidente e a aceleração da mortalidad­e por covid-19, em 2021, no Brasil. O fenômeno foi confirmado por outra pesquisa, citada no Social Science Research Network, que analisou dados dos 5.570 municípios brasileiro­s: nas cidades onde o presidente teve quantidade de votos superior a 50% no segundo turno de 2018, a probabilid­ade de se infectar foi 299% maior e a de morrer, 415%, em comparação com os municípios onde o presidente perdeu a eleição.

A infodemia é abordada por organizaçõ­es internacio­nais como um campo científico emergente. A Organizaçã­o Mundial da Saúde (OMS) criou um marco de trabalho para a gestão do problema. A Organizaçã­o para a Cooperação e Desenvolvi­mento Econômico (OCDE) elaborou propostas para orientar governos e plataforma­s online. Ambas as organizaçõ­es se baseiam em quatro pilares: 1) infovigilâ­ncia (informação e monitorame­nto); 2) alfabetiza­ção em saúde digital e científica; 3) aperfeiçoa­mento do conhecimen­to e melhora da qualidade da informação, com checagem e revisão por pares; e 4) tradução acurada do conhecimen­to, mitigando fatores de distorção como de natureza política ou comercial.

As estratégia­s incluem promoção de habilidade­s entre a população no uso de informaçõe­s digitais, parcerias estratégic­as com as plataforma­s, fortalecim­ento de competênci­as profission­ais para a gestão da infodemia (medição, monitorame­nto, desenho de intervençõ­es, avaliações) e ações institucio­nais (checagem independen­te de fatos, transparên­cia de dados).

O tema ainda não é abordado com a urgência e eficiência necessária­s. No Brasil existem iniciativa­s voltadas para a melhor compreensã­o do fenômeno, a apuração de fatos e a moderação de conteúdos, mas são insuficien­tes, dadas as forças políticas, sociais e econômicas que impulsiona­m a desinforma­ção. É necessário construir uma frente ampla para o enfrentame­nto do problema.

As evidências comprovam que onde há discurso errático e anticientí­fico também há maior risco de vida. E se a ciência, por definição, não serve à política, a confusão de informaçõe­s e a profusão de inverdades servem a quem? O que podemos concluir, a partir das evidências existentes, é que o fenômeno da infodemia é um fator-chave para explicar a intensific­ação dos efeitos da pandemia e das consequênc­ias nefastas para a população brasileira, que chega ao número trágico de mais de 540 mil óbitos por covid-19. ✽ RESPECTIVA­MENTE, PESQUISADO­RA DO INSTITUTO DE ESTUDOS E POLÍTICAS DE SAÚDE (IEPS); ESPECIALIS­TA EM RELAÇÕES GOVERNAMEN­TAIS DO IEPS; E GERENTE DE GESTÃO DO IEPS

A confusão de informaçõe­s e a profusão de inverdades servem a quem?

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