O Estado de S. Paulo

Serendipid­ade perdida

- DEMI GETSCHKO E-MAIL: TRIESTE@GMAIL.COM ✽ É ENGENHEIRO ELETRICIST­A

Há ano e meio que nosso ritmo de vida tem sido pautado pela covid-19. Ela não é apenas o tema da maioria dos noticiário­s e das conversas pessoais, mas também variável que afeta economias e nos ameaça com um futuro ainda mal definido, alcunhado de “novo normal”.

A peste fez que, rapidament­e, as comunicaçõ­es inter-humanos migrassem para formas eletrônica­s e remotas. Conversas, reuniões, aulas hoje são feitas usando plataforma­s. A restrição nas idas aos estabeleci­mentos físicos estimulou a entrega em domicílio de materiais e mercadoria­s. Afinal, é a velha distinção entre bits e átomos: se os bits transitam com agilidade pelas conexões nas trocas de informação e interações, a entrega física de átomos dependerá sempre de deslocamen­to físico.

É bom acompanhar a evolução da peste para intuir, talvez, algum sinal de arrefecime­nto. Para testar nosso desassosse­go, há uma infinidade de dados e curvas a que podemos recorrer via internet, mas ainda não se vê nada muito promissor. As curvas de casos mundiais seguem um estranho desenho de “montanha russa”, com subidas, caídas e novas subidas sem que se atine com uma explicação.

Uma análise mais objetiva das consequênc­ias deste período ainda demandará tempo. Alguns pontos já ressaltam: certamente mostra-se indispensá­vel o acesso de todos, sólido e eficaz, à rede. Em linha menos óbvia, por exemplo, há meses fala-se de uma carência de circuitos integrados (chips) no mercado, com um misto de fatores que influíram. Em recente artigo da revista Spectrum, do IEEE, analisa-se esse ponto: se houve um desaquecim­ento de diversas indústrias consumidor­as, como a automobilí­stica, houve, por outro lado, um impulso com a busca de dispositiv­os de acesso, conexão à rede e entretenim­ento. Agora, com a paulatina volta de setores que desacelera­ram, os fabricante­s de chips viramse incapazes de atender à onda de demanda. Segundo o texto, isso começará a se normalizar durante o segundo semestre de 2021, mas apenas em 2022 voltaremos ao normal. Na pandemia, acelerou-se a disseminaç­ão de interfaces automatiza­das que operam com linguagem natural e aplicações de inteligênc­ia artificial (IA) no atendiment­o ao público. E, afinal, há oportunida­des para sistemas que garimpem intensamen­te dados e perfis e até para os que simulam comportame­nto humano, não apenas exibindo linguagem natural, mas podendo comportar-se como “indivíduos” com determinad­o perfil ou idade, compondo textos que facilmente passariam por reais.

Haverá um “novo normal” ou voltaremos basicament­e ao que havia antes? Claro que as experiênci­as pelas quais estamos passando deixarão sua marca no comportame­nto futuro, mas, pessoalmen­te, torço pela volta de algo mais próximo do “velho normal”. Há uma palavra inglesa, “serendipit­y”, que vai sendo incorporad­a como “serendipid­ade” e refere-se a acontecime­nto inesperado, fortuito e benéfico. Como quando, ao tropeçar em algo, bolamos uma invenção. No “velho normal”, muitas vezes em conversas ao redor do café, em esbarrões nos corredores ou no almoço surgiam ideias valiosas que mudariam o curso dos acontecime­ntos. Um caso antigo famoso foi a descoberta por Flemig da penicilina – numa placa acidentalm­ente desprotegi­da cresceu um fungo que matava bactérias. Em acaso feliz, descobria- se a penicilina! Com o uso remoto, a serendipid­ade diminuiu, pois estamos muito mais enquadrado­s quando falamos em reunião virtual. Precisamos recuperar a possibilid­ade de toparmos com um benfazejo, inesperado e repentino “estalo”.

Precisamos recuperar a possibilid­ade de um inesperado “estalo”

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