O Estado de S. Paulo

CLÁSSICOS GANHAM LETRAS

Projeto dos músicos Luca Raele e Marcelo Quintanilh­a põe temas em canções de Beethoven e outros compositor­es

- João Marcos Coelho ESPECIAL PARA O ESTADÃO

O musicólogo norte-americano Lewis Lockwood escreveu, em 2003, um dos mais qualificad­os e abrangente­s livros sobre Beethoven. Felizmente, existe uma tradução em português, lançada pela Editora Códex no ano seguinte. Num prefácio escrito em 2018, a propósito de uma nova edição do livro, mostrando que a fama multissecu­lar de Beethoven entre o grande público se deve a seus temas mais famosos, como o das batidas do Destino na Quinta Sinfonia ou a Ode à Alegria da Nona Sinfonia, Lockwood cita uma anedota envolvendo o compositor francês Maurice Ravel.

Alguém lhe perguntou como iam as coisas em relação a uma obra de grandes proporções que estava compondo. Ele teria respondido: “Terminei tudo, exceto os temas”. Esta pitada de fino humor de Ravel, diz Lockwood, lembra que, no vasto repertório da música clássica, os “temas” de uma composição são suas caracterís­ticas definidora­s mais óbvias. Eles são as assinatura­s pelas quais geralmente a gente recorda e identifica uma composição inteira ou qualquer um de seus movimentos.

Há muitas melodias de obrasprima­s da música de concerto que já receberam letras e foram adaptadas de várias maneiras. Mas o detalhe é que em geral se aproveita apenas a primeira melodia, a que é a assinatura da obra para o grande público. O tema a que se referiu Ravel na piada contada por Lockwood.

Conhecedor profundo do repertório clássico romântico, o clarinetis­ta, pianista, compositor e arranjador Luca Raele propôs ao cantor e compositor Marcelo Quintanilh­a uma aventura singular: colocar letra em grandes temas da música clássica. Depois de muito trabalho, eles selecionar­am 11 melodias de 10 compositor­es que atendem pelos nomes de Bach, Vivaldi, Mozart, Beethoven, Schubert, Schumann, Chopin, Brahms, Tchaikovsk­i e Debussy.

Ora, pegar apenas o tema e colocar uma letra seria simplista, simplório até. Infelizmen­te, é o que geralmente ocorre, desde priscas eras – como os anos 1970, em que foi sucesso mundial o famigerado arranjo poplatin-sinfônico feito pelo argentino Waldo de los Rios do Molto Allegro inicial da Sinfonia N.º 40 de Mozart. Ele inventou um galope, parece que se ouve um caubói de um western spaghetti. Foi replicado zilhões de vezes por outros arranjos estilo Frankenste­in, plenamente desconjunt­ados.

Esta dupla refinada passa longe desse tipo de trapalhada. Construiu um álbum duplamente sensaciona­l. Primeiro porque os arranjos e as letras, além das performanc­es, são de primeiríss­ima qualidade. Depois, porque também é capaz de atingir o grande público porque dele participam, em duetos com Marcelo, nomes muito conhecidos como as cantoras Mônica Salmaso, Virgínia Rodrigues e Daniela Mercury, além do padre-cantor Fábio de Melo.

O título é Erudito, ou seja, como Luca explica, o erudito versado, letrado, cantado, transforma­do em canção. E por canção entenda-se bossa nova, moda de viola, marcha-rancho, samba choro e congado. Os arranjos são assinados por Luca Raele, que também toca piano e clarinete; Marcelo Quintanilh­a, além de cantar e escrever todas as letras também pilota o violão. Camilo Carrara se alterna entre violões, bandolim e guitarra – e Danilo Vianna toca o baixo acústico. A direção artística do recém-lançado álbum Erudito, da YB Music, é de Luca Raele e Camilo Carrara.

Vou ficar num exemplo só, Nem País, Nem Paz, baseado num dos mais lindos temas compostos por Brahms, em sua terceira sinfonia. Vá ao Youtube, batuque Brahms Symphony 3 Poco Allegretto e ouça. São 7 minutos, em média. Em seguida, escute a faixa 5 de Erudito, Nem País, Nem Paz. Você deve ter notado que há, além do conhecidís­simo tema inicial, um outro igualmente belo mas ao qual você não havia prestado atenção nem é memorável a ponto de estar no nosso inconscien­te. Pois Luca e Marcelo usam não apenas o tema aqui conhecido, mas também o segundo tema dessa romança, na versão de Brahms, reinventad­a como canção sobre o drama dos refugiados. A canção tem 4’35 e o segundo tema aparece na altura de 1’55. Luca faz dele um delicadíss­imo intermezzo com o som caracterís­tico do clarinete surgindo num levíssimo colchão de piano e cordas dedilhadas, até a coda, quando Marcelo Quintanilh­a e seu convidado para esta faixa-degustação do álbum, o padre Fábio de Melo, voltam a cantar.

Todo esse sofisticad­o trabalho musical poderia ir a pique se a letra fosse daquelas comuns e óbvias de tantas canções feitas para durar 15 minutos e depois mergulhare­m no cesto do lixo descartáve­l. Mas elas são igualmente refinadas. Como a de Nem País, Nem Paz. Marcelo não é só bom cantor, é excelente letrista – veja um trecho:

“Quem partiu sem chegar / Quem deixou seu lugar / Sem poder se aprontar / Sem saber onde aportar / Que o mar sem fim, sem cais / Só desfaz o que ficou pra trás / Quem perdeu junto ao chão / Pai e mãe, filho, irmão / Só ganhou não e não / Sem caber, qual a direção? / Que o norte, o sul e mais / Cardeais, não têm país nem paz / É gente da mesma Terra / São tantas, e a mesma guerra / E os muros entre nós / Sempre mais sós / Só deixam ver / Lado de cá Nada a fazer / Se já nem há / Lado de lá / Só bandeiras / E trincheira­s / Só fronteiras / Quem partiu sem chegar / Quem deixou seu lugar / Sem poder se aprontar / Sem saber onde aportar / Que o mar sem fim, sem cais / Só desfaz o que ficou pra trás.”

Isso é que é fazer uma ponte virtuosa entre melodias eruditas que estão no inconscien­te coletivo e a canção popular. Cada canção é uma viagem transversa­l que parte do erudito e constrói canções consistent­es, que não devem ser ouvidas porque são bem arquitetad­as ou embutam sacadas inteligent­es. Também por isso, mas sobretudo porque são deliciosas, aliando temas conhecidos com letras que fazem parte do nosso dia a dia.

Última informação: este exercício que acabei de fazer em relação ao poco allegretto da Sinfonia N.º 3 de Brahms transforma­do na canção Nem País Nem Paz pode ser replicado por você numa playlist elaborada por Luca Raele disponível no Spotify: ele colocou o movimento ou trecho da peça erudita e em seguida a canção nela baseada.

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LUAN CARDOSO Convidado. Padre Fábio de Melo participa de ‘Erudito’, idealizado por Raele e Quintanilh­a

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