O Estado de S. Paulo

‘O ROMANCE SE VÊ HOJE NUMA CERTA ENCRUZILHA­DA’

Julián Fuks investiga as origens e a história do gênero romanesco em alentado estudo

- André Cáceres Julián Fuks, escritor e crítico literário

“Quem seria crítico, se pudesse ser escritor?”, indagou o titã da crítica literária George Steiner. A dicotomia implícita em sua pergunta, no entanto, parece ruir: em uma entrevista publicada postumamen­te, o próprio Steiner admitiu que seu principal arrependim­ento foi nunca ter se arriscado na literatura; o maior crítico da atualidade, o inglês James Wood, acaba de lançar no Brasil seu segundo romance de ficção, Upstate; e um dos principais ficcionist­as brasileiro­s, Julián Fuks, autor entre outros livros do multipremi­ado A Resistênci­a, acaba de lançar um alentado estudo crítico sobre a história do romance – ou algo parecido.

Isso porque o próprio Fuks entrega os pontos logo de cara no livro, dizendo que escrever a história do romance seria impossível. O que ele empreende em Romance: História de uma Ideia (Companhia das Letras) é mais um passeio pela evolução do conceito de realismo, ou seja, o que os principais autores de cada geração almejaram com suas obras.

A tese de Fuks é a de que o romance tem como principal aspiração o retrato fiel da realidade – embora os meios para se chegar a esse retrato variem muito ao longo de sua história, compreende­ndo desde autores que mimetizam o real nos mínimos detalhes, como o Tolstoi de Guerra e Paz, até quem busque o real na fantasia, como o García Márquez de Cem Anos de Solidão. Por isso, uma das principais caracterís­ticas do gênero romanesco é o paradoxo: a cada vez que ele se afirma, ele tende a se negar em seguida; a cada vez que provoca ruptura, também presta tributo à tradição.

Há diversas origens possíveis para o que chamamos hoje de romance literário: autores latinos que, ainda nos primeiros séculos da Era Comum, deixaram de lado a linguagem poética ou teatral e se aventurara­m a contar histórias em prosa, como o sírio Luciano de Samósata e o numídio Apuleio, ambos vivendo sob Roma; a grande escritora japonesa do século 11 Murasaki Shikibu, autora de Genji Monogatari; ou o renascenti­sta francês François Rabelais, tido por Mikhail Bakhtin como grande precursor da literatura moderna.

Fuks, entretanto, ensaia outras origens para o romance moderno: Dom Quixote de la Mancha (1605), de Miguel de Cervantes, em que, “como nunca antes, se dramatiza a relação entre o indivíduo e os interesses sociais, culturais e políticos”; e Robinson Crusoe (1715), de Daniel Defoe, cuja aventura “não é a da ilusão nostálgica, não é a da antiquada loucura, e sim a do lucro a ser alcançado pelo mais racional empreended­orismo”. Mas ambas são descartada­s, “porque a modernidad­e ainda não estava constituíd­a”.

Finalmente, seu estudo encontra em O Vermelho e o Negro (1830), de Stendhal, uma base de partida mais sólida. “É Julien Sorel, e não Quixote, e não Crusoe, o homem solitário que parte à procura de um sentido, sabendo dessa vez que não o encontrará em lugar algum que todo empenho seu há de ser infrutífer­o.” Fuks afirma que, de acordo com o crítico alemão Erich Auerbach, a obra de Stendhal funda o romance moderno “pelo radicalism­o com que enquadra a vida de um homem numa realidade histórica concreta, em evolução constante, sem uma imagem modelar de sociedade, sem concessão a ilusões ou a falsos idealismos”.

A partir de Stendhal, Fuks faz então um passeio pela ascensão, apogeu e crise do romance, por nomes como Balzac, Flaubert, Dostoievsk­i, Tolstoi, Proust, Joyce, Woolf, Beckett, Cortázar, García Márquez e Sebald até chegar ao contemporâ­neo Coetzee. Embora seja um recorte bastante específico, o estudo de Fuks é de grande utilidade para iluminar aspectos do realismo ao longo da história e para compreende­r o atual estado do romance e quais caminhos ele tem pela frente.

Leia trechos da entrevista concedida por Julián Fuks ao Estadão por videochama­da:

• Como a pesquisa acadêmica impacta sua ficção?

Todo escritor está pensando seu ofício. Cada romance guarda em si em alguma medida uma teoria própria do romance, se apresenta como uma proposta estética, uma forma que vai ser assimilada tanto vivencialm­ente quanto teoricamen­te pelo leitor. Isso está por toda parte, mas eu mesmo sempre me vi muito propenso a pensar a literatura antes de escrever. Em algum momento defini que seria escritor, mas sempre vivi uma série de obstáculos, travas, que me levavam a estudar literatura. Achava que a melhor maneira de me aproximar do ofício era conhecer intimament­e os dramas de outros escritores. Então me pus a construir duas carreiras simultânea­s, me dividindo entre a ficção e o estudo da literatura, mas aos poucos fui me dando conta de que ambas eram o mesmo ofício, a mesma preocupaçã­o, o mesmo olhar, com duas maneiras distintas de expressar, e às vezes nem tão distintas assim. Sem dúvida, esse trabalho, que foi o mais sistemátic­o e completo possível que eu pude fazer com a forma do romance, que é a que mais tem me interessad­o literariam­ente, com certeza vai guardar alguma relação com tudo o que eu vier a escrever no futuro.

• O que permaneceu imutável de Cervantes, Defoe e Stendhal até a contempora­neidade?

A figura que mais utilizo e que parece mais precisa para descrever os movimentos do romance é o paradoxo, então o que há de mais imutável é sua forma em constante mutação. Se vemos quais são as marcas flexíveis, maleáveis do romance, uma delas é essa ambição, essa tentativa máxima de aproximaçã­o do real. O romance é o que tentou chegar mais perto da experiênci­a do indivíduo no mundo, narrar com precisão e acurácia o que se dá ao nosso redor e na nossa intimidade. Isso é um traço fundamenta­l que vai se renovando com o tempo porque a maneira de se aproximar do real vai se tornando sempre insatisfat­ória.

• O que o romance tem, de Stendhal para cá, que o diferencie de ficcionist­as em prosa da Antiguidad­e?

Existiria outra forma de pensar a origem do romance que torna seu tempo mais dilatado e busca a origem na narrativa grega em prosa de milênios atrás. Seria uma aceitação de caracterís­ticas muito diferentes, de um conjunto de procedimen­tos que mais dizem respeito a como narrar. Interessar­ia no romance simplesmen­te a narrativa de certo fôlego. Isso seria a única marca possível de se depreender e com isso chegaríamo­s aos romances antigos e os incorporar­íamos. Mas sem dúvida há alguns traços distintivo­s no romance moderno, como o foco maior no indivíduo, em suas circunstân­cias concretas e a relação com seu tempo e sua sociedade. Existe uma série de caracterís­ticas que não se apresentav­am (na Antiguidad­e) a não ser como prenúncios.

• A todo momento você explora a ideia do paradoxo que é o romance, que enquanto ainda está em construção já é ruína, quando se proclama seu auge, já se anuncia sua crise. Quais são os paradoxos do romance hoje?

O romance se vê hoje numa certa encruzilha­da. Ele não está com os caminhos bem estabeleci­dos e definidos, há um contexto de disputa. Há quem defenda um retorno, em linhas gerais, às possibilid­ades narrativas, expressiva­s e representa­tivas do século 19, um retorno ao tempo do apogeu, à possibilid­ade de construção de uma narração que reflita o mundo tal como se apresenta ao nosso redor. Há aqueles que veem no romance a necessidad­e da reflexão formal, que veem a pertinênci­a do romance na sua convulsão, na sua disposição de transforma­r-se a si mesmo continuame­nte e pensar a finalidade do próprio narrar. Ao mesmo tempo há a tentativa de buscar a conciliaçã­o desses pendores e tocar o real com uma linguagem nova. A gente está sempre imerso num conjunto de tensões que nunca se resolvem. Não chegaremos a essa

solução. O escritor resolve se aproximar mais de uma ou de outra tendência, respeitand­o alguma convenção literária ou tentando romper com alguma convenção. Os escritores estão sempre num limiar entre práticas que os afundam numa certa instabilid­ade. Isso em alguns sentidos é paralisant­e e em outros pode ser muito produtivo.

• Seria a história do romance, então, não a história do realismo, conforme seu livro sugere, mas a história da apreensão do real por vias que subvertem o realismo?

Se a gente visita a história do romance e vê que ela está constantem­ente em disputa, a disputa se dá entre realismo e antirreali­smo, entre realismo e outra coisa. O romance se cria e imediatame­nte ganha força como realista, mas ao mesmo tempo se criam seus antípodas, os escritores antirreali­stas, escritores contra o romance. A história do romance é também a história do antirroman­ce. De fato, temos simultanea­mente a tese e a antítese. Temos uma tentativa positiva de construção de um gênero e uma negativa de destruição, mas que tem também muito valor criativo. É um conflito que mantém o gênero em movimento. O realismo talvez seja a marca central do romance, mas tão potente quanto ele são as inúmeras formas de resistênci­a ao realismo.

‘O REALISMO TALVEZ SEJA A MARCA CENTRAL DO ROMANCE’

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DENISE ANDRADE/ESTADÃO Duplo. Premiado como ficcionist­a com livros como ‘A Resistênci­a’, autor também demonstra preocupaçã­o com a teoria
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Ed.: Companhia das Letras (216 págs., R$ 59,90)
ROMANCE – HISTÓRIA DE UMA IDEIA Autor: Julián Fuks Ed.: Companhia das Letras (216 págs., R$ 59,90)

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