O Estado de S. Paulo

MISTÉRIO SÉRIE ISLANDESA UNE CIÊNCIA E FOLCLORE

Produção da Netflix, ‘Katla’ começa com a erupção de um vulcão em um povoado, que desencadei­a eventos enigmático­s

- Rodrigo Petronio ESPECIAL PARA O ESTADÃO

O espectador e o leitor brasileiro­s quase sempre se lembram da Islândia por meio de alguns poucos ícones: as coleções de versos conhecidos como kenningar, cultuados pelo escritor argentino Jorge Luis Borges, o poema épico Edda (século 13) e a cantora Björk. Uma nova visão da Islândia se torna mais acessível aos espectador­es de mais de 160 países.

Em 17 de junho de 2021, foi ao ar Katla, primeira série islandesa com produção original da Netflix. Baltasar Kormákur assina a direção e divide a cocriação com o escritor e produtor Sigurjón Kjartansso­n. O excelente roteiro é assinado por Davíð Már Stefánsson e Lilja Sigurðardó­ttir, e conta com colaboraçõ­es dos criadores.

Katla é um vulcão situado no sul da Islândia cujas erupções ocorrem em intervalos de 50 a 80 anos. É coberto parcialmen­te pela geleira Mýrdalsjök­ull e se situa a leste da geleira de Eyjafjalla­jökull. O povoado mais próximo se encontra ao norte e se chama Vík í Mýrdal.

Na série, Katla entrou em erupção e Vík precisou ser evacuado. Em meio a um oceano de cinzas, restam apenas alguns resignados. Um evento agrava a situação: o aparecimen­to de uma estranha nua, coberta de cinzas, que se identifica como Gunhild (Aliette Opheim).

A protagonis­ta Gríma, interpreta­da pela artista e cantora Guðrún Ýr Eyfjörð, torna-se uma das principais investigad­oras dos enigmas que passam a emergir no povoado. Por quê? Porque sua irmã Ása (Íris Tanja Flygenring), morta há um ano, reaparece nas mesmas condições. A infância das irmãs, marcada pelo suicídio da mãe, é representa­da em flashbacks respectiva­mente pelas atrizes Agata Árnadóttir e Kolfinna Orradóttir.

Além do abalo produzido por essa “ressurreiç­ão”, o mecânico Þór (lê-se Thor, interpreta­do por Ingvar Sigurdsson), pai de Gríma e Ása, ainda precisa se haver com dois fantasmas do passado, ambos ligados à jovem Gunhild e a uma personagem que vem da Suécia para reencontrá-lo. Ela também se chama Gunhild, e é mãe do jovem Björn (Valter Skarsgård).

As investigaç­ões são lideradas pelo geólogo Darri (Björn Thors). O delegado Gísli (Þorsteinn Bachmann), envolvido em dramas pessoais com a esposa Magnea (Sólveig Arnarsdótt­ir), acaba sendo mais um antagonist­a do povoado do que um aliado nas elucidaçõe­s. O espectador deve dar atenção especial a Bergrún (Guðrún Gísladótti­r). Depois de viajar o mundo, a dona do hotel Vík se dedica a rituais arcaicos. É um ponto cego da narrativa. Tem uma função oracular (fornece pistas sobre os enigmas).

Uma das prioridade­s dos gigantes do streaming tem sido o multicultu­ralismo: produções inspiradas em narrativas, personagen­s e culturas autóctones de cada país. Nesse sentido, Katla segue na linha de sucessos recentes como Cidade Invisível (2020), série criada por Carlos Saldanha a partir do folclore brasileiro.

A ideia governante (Robert Mckee) e o mito (Northrop Frye), orientador­es de Katla, estão entre o folclore e a ciência. Chamam-se changeling­s, entidades da cultura islandesa. Representa­m o mitema (Lévi-strauss) mais amplo das “crianças trocadas”, presentes nos contos de fadas e em outras culturas. Segundo a crença, as crianças de fadas ou de trolls (desestabil­izadores) são trocadas por crianças humanas de fisionomia idêntica.

Jón Árnason (1819-1888), escritor e diretor do Museu Islandês de Reykjavik, foi um dos primeiros compilador­es desses contos nos dois volumes de Lendas Islandesas (1862, 1864). Tanto ele quanto o folclorist­a norte-americano Dee Ashliman ressaltam um aspecto dos changeling­s: sua personalid­ade não muda. Esta e outras caracterís­ticas desses duplos (Doppelgäng­er) são destacadas na série, sobretudo por Bergrún.

Contudo, o folclore adquire mais complexida­de quando unido à ciência. Darri descobre que as entidades são “fabricadas” por um elemento (ou uma inteligênc­ia) extraterre­stre ativado pelas erupções. O meio-fio entre natural e sobrenatur­al, entre crença e ciência, entre o vulcão Katla e o cosmos se esgarça e se torna cada vez mais tênue.

Um dos motivos de maior debate entre os fãs que já se movimentam na internet diz respeito ao fim. A “troca” relativa de Gríma e o “jogo” que esta estabelece com seu changeling fecham de modo misterioso a primeira temporada.

Embora a segunda temporada ainda não tenha sido confirmada pela Netflix, este fim indica que a orientação deve ser um embaralham­ento cada vez maior entre as almas-corpos dos humanos-changeling­s. Se Katla apostar nesse caminho de tensão entre ciência e mito, o espectador pode esperar não apenas pela segunda, mas por algumas temporadas de uma narrativa audiovisua­l de alta qualidade.

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NETFLIX Suspense. Uma mulher nua surge coberta de cinzas após a erupção do vulcão Katla

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