O cão abstrato
Vou levar o meu cão abstrato para passear. E olhar nossa imagem refletida na vitrine de uma loja de calçados. Nela, vamos nos multiplicando e nos subtraindo. Já não estamos mais lá ou em qualquer outro lugar. Acho que ouvi um latido.
A vida e suas largas avenidas. Multidões que descem as escadarias do Metrô. O motorista de aplicativo que se chamava Caronte cancelou minha corrida. O ônibus que me deixou com o braço estendido para sempre. Vou a pé – com meu cão abstrato.
A arte dos encontros é uma língua morta. Você não mora mais aqui. Se eu não sair do lugar, se eu bancar uma estátua, talvez te veja passar. E te veja com seus cabelos encaracolados de sonhos surrealistas. E te veja carregando essa utopia de beleza para cima e para baixo.
Você ia gostar de me ver agora.
Tudo é igreja, boteco e estacionamento. Um padrão que se repete. Tanto faz a porta que vou bater
Ou melhor, é uma pergunta: Você ia gostar de me ver agora?
Tudo é igreja, boteco e estacionamento. Um padrão que se repete. Tanto faz a porta que vou bater. O quê? Meu cão abstrato pensou que era um poste. Desculpe, meu senhor. Ele já não enxerga tão bem. Não vai ficar mancha nenhuma. Nunca fica.
Agora tenho um problema: um homem confundido com um poste. O homem poste quer vingança, ameaça me bater e jura me matar. Que culpa tenho eu se ele é incapaz de perdoar meu cão abstrato com problemas urinários?
Ter um problema é estar vivo. Quem não tem problemas já está morto. Agradeço ao homem poste – que me responde com um soco no olho. Não reclamo. Acho que o olho roxo combinou comigo. Acho que me deu uma aura qualquer, uma marca, uma distinção. Não sou mais como vocês.
Sou um ‘sir’ como Paul Mccartney, Mick Jagger e Anthony Hopkins.
Puxo meu cão abstrato. Vem, vem, vamos para casa. A gente nunca sabe o que pode nos acontecer na próxima esquina. Acho que ouvi um latido. •