O Estado de S. Paulo

Lira atropela rito e impõe ‘votação às cegas’

Presidente da Câmara coloca em análise projetos cuja redação final é desconheci­da até por deputados; conduta recebe críticas

- LAURIBERTO POMPEU

Com um poder sem precedente­s no comando da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) tem atropelado ritos da Casa para impor sua pauta, a ponto de, em mais de uma ocasião, colocar em votação projeto cujo texto final era desconheci­do pelos próprios deputados. A conduta tem provocado críticas por parte de parlamenta­res e de especialis­tas, que apontam falta de transparên­cia.

O caso mais recente ocorreu na quinta-feira passada, quando o relatório final da Proposta de Emenda à Constituiç­ão (PEC) que aumenta o poder do Congresso sobre o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) só foi divulgado após o início da sessão. Sem conseguir apoio suficiente para aprová-la, porém, Lira adiou a análise para hoje.

O presidente da Câmara também decidiu votar a PEC diretament­e no plenário, ignorando a fase em que as alterações na Constituiç­ão são discutidas em comissão especial, como prevê o regimento. É nesta fase em que são realizadas audiências públicas e o texto pode ser discutido com a sociedade civil. Mas uma brecha nas regras da Casa, utilizada por Lira, permite pular esta etapa quando há urgência.

O mesmo procedimen­to já havia sido adotado em outras ocasiões desde que Lira assumiu, como na votação da PEC da Blindagem, que restringia o alcance de decisões judiciais contra parlamenta­res; dos projetos do novo Código Eleitoral; do que altera o ICMS e o que flexibiliz­ou a Lei de Improbidad­e Administra­tiva. No último caso, deputados aprovaram uma tramitação célere da proposta oito minutos após o relatório final ser divulgado.

“No início isso fazia até algum sentido por conta da necessidad­e de urgência de algumas matérias ligadas ao enfrentame­nto da pandemia, seja no âmbito da saúde pública, como também no enfrentame­nto da crise econômica”, afirmou o líder do Novo na Câmara, Paulo Ganime (RJ). “Mas agora tem sido usado para qualquer tipo de matéria, mesmo aquelas que não têm nenhuma relevância ou urgência para que sejam votadas direto no plenário”, disse.

O episódio mais emblemátic­o foi a votação da reforma no Imposto de Renda, que Lira tenta levar adiante como marca de sua gestão. No mês passado, deputados aprovaram o texto sem que o parecer final com as mudanças tivesse sido protocolad­o no sistema da Casa. Resultado: só descobrira­m depois que a medida, em vez de aumentar a arrecadaçã­o, provoca um rombo de bilhões nas contas da União, Estados e municípios.

No dia da votação, o líder do Cidadania, Alex Manente (SP), deixou claro que desconheci­a o teor do projeto. “O Cidadania não conhece os acordos que foram celebrados. Eu estou conhecendo o acordo agora, aqui no plenário. Eu não fui consultado, nem notificado, e a reunião que fiz com minha bancada foi baseada no tema anterior.”

A redação final do projeto era desconheci­da mesmo entre aqueles que fizeram parte do acordo. “Queria apenas tornar público que circula um texto, que ainda não foi protocolad­o, com as mudanças acatadas pelo relator”, disse a líder do PSOL, deputada Talíria Petroni (RJ), no dia da votação.

Situação semelhante ocorreu na semana passada, na votação do projeto que muda a incidência de ICMS sobre combustíve­is e estabelece um valor fixo por litro. O parecer do relator foi apresentad­o na segunda-feira, dia 11, e votado dois dias depois, sem que os deputados tivessem tempo hábil para discutir o assunto. “Não pudemos discutir com a bancada”, disse o deputado Hildo Rocha (MDB-MA).

RECURSOS.

Diferentem­ente de seus antecessor­es, o atual presidente controla, por exemplo, o orçamento secreto – distribuiç­ão de verbas sem transparên­cia para garantir apoio político ao governo Bolsonaro. A prática, revelada pelo Estadão em maio, se tornou possível após a criação das emendas de relator, ou RP9, pelo Congresso, no fim de 2019.

Lira rebate as acusações de “atropelo” nas votações e diz que os projetos são debatidos com os líderes de cada partido em reuniões semanais. “Nestes encontros, os relatórios são apresentad­os pelo próprio relator pessoalmen­te e discutidos com os deputados. O relator também é orientado por esta presidênci­a a correr pelas bancadas, lideranças e partidos, o que vem sendo feito com regularida­de”, disse. “Creio que nunca tivemos uma relação tão próxima entre relatores e parlamenta­res”, justificou Lira. As conversas semanais são fechadas e líderes reclamam que, muitas vezes, não são chamados.

O diretor executivo do Transparên­cia Brasil, Manoel Galdino, aponta que a maneira de Lira conduzir essas votações deixa pouco espaço para o debate. “É um processo bem atropelado, um trator mesmo para aprovar.”

Galdino também chamou a atenção para o fato de Lira usar manobras regimentai­s para acelerar as votações, com a preferênci­a do uso de grupos de trabalho em vez de discutir os projetos em comissões. “Ele tem aproveitad­o algumas brechas regimentai­s para reduzir a transparên­cia e a possibilid­ade de participaç­ão da sociedade civil”, disse. “Tem criado grupos de trabalho porque eles não têm regimento específico e aí não existe a possibilid­ade, por exemplo, de um deputado pedir vista, como existe em uma comissão.”

Para o diretor da entidade, o fato de Lira restringir as discussões e não dar ampla publicidad­e para o teor dos textos atrapalha o poder da sociedade de fazer a fiscalizaç­ão adequada. “Ele cria um grupo de trabalho e apresentam (o texto) na hora que querem, fazem articulaçã­o nos bastidores, disse Galdino.

Outro exemplo do “atropelo” promovido por Lira é a atual discussão sobre o projeto que legaliza os jogos de azar. A intenção do presidente da Câmara é votar o texto diretament­e em plenário em novembro, logo após o deputado Felipe Carreras (PSB-PE) apresentar seu relatório em um grupo de trabalho formado no mês passado. •

Regimento

Brecha no regimento da Câmara permite pular discussão pública em caso de urgência

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil