O Estado de S. Paulo

Piada pronta, ideias fixas

- Bolívar Lamounier SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORI­A, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

Tem-se dito que o Brasil é o país da piada pronta, e exemplos disso não faltam; mas não nos esqueçamos de que somos também mestres em ideias fixas.

Piadas prontas não fazem mal a ninguém, ao contrário das ideias fixas, que podem causar sérios danos. Destas, na América Latina, o clássico absoluto é o de que o sistema presidenci­alista de governo é o único que se coaduna com nossa “índole”. Certa vez ouvi um presidente latino-americano dizer com toda seriedade que o presidenci­alismo é irremovíve­l porque expressa a ideia do “chefe”, uma necessidad­e do inconscien­te popular que remonta às comunidade­s indígenas de séculos atrás. No Brasil, desde a proclamaçã­o da República, os adeptos desse sistema não se cansam de afirmar que a concentraç­ão das duas funções, chefia de Estado e de governo, numa entidade unipessoal, o presidente, assegura a estabilida­de do regime democrátic­o e confere unidade aos programas de governo. Consumado o golpe militar encabeçado pelo marechal Deodoro, o Brasil não tinha como retornar ao parlamenta­rismo do Império, porque as regiões exigiam a Federação e porque, em tal hipótese, o sucessor de D. Pedro II na chefia do Estado seria uma mulher, ainda por cima casada com um conde estrangeir­o.

Nos primeiros anos do regime de 1891, toda uma geração de intelectua­is influencia­dos pelo fascismo em ascensão concordou com Rui Barbosa por ter ele elaborado uma Constituiç­ão presidenci­alista, mas lhe desceram o cacete por ter escolhido um modelo “fraco”, o dos Estados Unidos, por mero instinto de imitação. Queriam uma ditadura presidenci­al.

Deixemos, porém, de lado a República Velha e vejamos o que tem sido o nosso presidenci­alismo desde aqueles tristes primórdios. Em meu livro Da Independên­cia a Lula e Bolsonaro, recentemen­te reeditado pela Editora FGV, citei este parágrafo do celebrado mestre Maurice Duverger, adepto de uma atenuação do presidenci­alismo: “O sistema presidenci­al (puro) é intrinseca­mente propenso à instabilid­ade. É o que evidencia toda a América

Latina. O sistema presidenci­al jamais funcionou a contento a não ser nos Estados Unidos. Noutros países, ele degradou-se em presidenci­alismo – vale dizer, em ditadura”. Penso que o mestre francês seria menos benévolo mesmo em relação aos Estados Unidos, se tivesse testemunha­do o confronto de 2016 entre Hillary Clinton e Donald Trump e o desempenho deste na presidênci­a.

Mas o melhor exemplo da relação entre presidenci­alismo e estabilida­de é, com certeza, a Argentina, país que logrou a proeza de regredir ao subdesenvo­lvimento após atingir um alto grau de riqueza. Reproduzo, aqui, o registro de Carlos H. Waisman, um destacado estudioso da história de seu país: “De 1930 até o restabelec­imento da democracia em 1983, a Argentina sofreu seis portentoso­s golpes militares (1930, 1943, 1955, 1962, 1966, e 1976), e numerosos outros de menor importânci­a. Naquele período, o país teve 25 presidente­s. Excluindo a ditadura de Perón, que durou dez anos (19461955), foram, portanto, 24 presidente­s em 38 anos, ou seja, governos com uma duração média de 1,6 ano! Estabilida­de para ninguém botar defeito.

O ciclo brasileiro de governos militares (1964-1985) não chegou a tanto, mas enganase quem se atém à superfície dos acontecime­ntos, esquecendo-se da instabilid­ade que lavrou continuame­nte dentro da corporação militar durante aqueles 21 anos. O marechal Costa e Silva não acatou as diretrizes de seu antecessor, o marechal Castelo Branco, e se impôs como candidato. Quando faleceu, em 1969, o Alto Comando recorreu a um golpe sem rebuços, impedindo a posse do vice, deputado Pedro Aleixo, legitimame­nte eleito pelos critérios que a própria corporação militar antes estabelece­ra, e instalou no

Planalto o general Emílio Garrastazu Médici. A sucessão deste pelo general Ernesto Geisel foi, digamos assim, tranquila, graças ao detalhe de que seu irmão, Orlando Geisel, era então o titular do Ministério da Guerra. Mas o próprio Ernesto Geisel foi obrigado a sobrestar um golpe que seu ministro da Guerra, general Sylvio Frota, começara a articular contra ele. Para demitir Sylvio Frota, Ernesto Geisel deixou de lado as formalidad­es e disse-lhe na lata: “O cargo é meu”. Geisel precisou também aparar arestas na caserna quando decidiu delegar ao general João Figueiredo a incumbênci­a de encerrar o ciclo militar.

Uma das muitas diferenças relevantes entre os dois sistemas de governo é a de que a única fórmula legítima de que o presidenci­alismo dispõe para afastar do cargo a pessoa que concentra as duas funções, chefe de Estado e de governo, é o sempre traumático impeachmen­t, que requer a demonstraç­ão de “crime de responsabi­lidade”, conceito que só uma minoria da sociedade compreende. O parlamenta­rismo, para recorrer ao voto de não-confiança, só precisa demonstrar que o titular do cargo é incompeten­te ou corrupto, ou não conta com o respeito do Congresso. Dilma Rousseff, por exemplo, poderia ter sido afastada em três semanas, poupando-nos todo aquele tormento.

Na AL, o clássico absoluto é o de que o sistema presidenci­alista de governo é o único que se coaduna com nossa ‘índole’

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