O Estado de S. Paulo

O que explica o fenômeno ‘Round 6’?

Do fascínio das crianças à critica ao capitalism­o, vários fatores decifram o sucesso da série

- CAMILA TUCHLINSKI DANIEL FERNANDES

Apergunta que muitos pais têm escutado de seus filhos pequenos, ultimament­e, é uma variação entre ‘Posso assistir?’ e ‘Todo mundo já viu, só eu não. Por quê?’. As perguntas não são novas. São feitas desde sempre por crianças que não entendem a restrição – ou a entendem e querem algo assim mesmo. O que há de novo é o que esses meninos e meninas querem assistir: a série sul-coreana Round 6. Entender os motivos de tanto sucesso – a produção já teve 111 milhões de acessos na Netflix em todo mundo e seu valor estimado é de R$ 5 bilhões – vai além de compreende­r o desejo das crianças, mas começa precisamen­te por elas e suas escolas.

A classifica­ção etária da série é 16 anos e o conteúdo chama atenção pela extrema violência. Brincadeir­as marcantes da infância de muita gente, como ‘batatinha 1, 2, 3’, ‘cabo de guerra’ e ‘bola de gude’, são usadas, por exemplo, para perpetrar assassinat­os. Os participan­tes são submetidos aprovas de sobrevivên­cia na série, e a estética de cores vibrantes nos cenários de

Round 6 e o ar inicialmen­te inofensivo das gincanas são uma combinação que mexe coma memória afetiva infantil de muitos adultos, mas desperta a curiosidad­e dos pequeninos.

“A sonoridade das brincadeir­as, o aspecto lúdico, as imagens infantis, tudo isso tem um apelo grande com o público infantil. E, sendo brincadeir­as menos frequentes entre as gerações atuais, desperta a curiosidad­e de como funcionam, atraindo ainda mais a atenção das crianças. Assuntos como ‘bolinhas de gude’ voltaram a ser tema entre as crianças

com quem convivo”, afirma a psicóloga infantil Tauane Gehm, doutora em Psicologia.

Diante do sucesso – e acessos – cada vez maiores, as escolas se movimentar­am. No Rio de Janeiro, a Escola Aladdin emitiu comunicado aos pais sobre a ‘obsessão’ dos jovens pela série, com a advertênci­a de que alguns estavam fazendo brincadeir­as com alusão ao assassinat­o de personagen­s. Em São Paulo, o tradiciona­l colégio Dante Alighieri também se manifestou. “Quando esse assunto começa a vir para cá, a gente precisa repactuar o olhar que família e escola têm juntas. Na época da Baleia

Azul, a gente também fez um alerta”, disse ao Estadão a diretora-geral educaciona­l do Dante, Valdenice Cerqueira. A menção à Baleia Azul não aparece por acaso. Também era um jogo aparenteme­nte inocente, que também envolvia uma série de tarefas que seus participan­tes precisavam cumprir… e que poderia levar à morte real ou virtual.

Em Poços de Caldas, Minas

Gerais, a professora de Artes Andréa Ribeiro Campos, do Colégio Dr José Vargas de Souza, percebeu o alvoroço dos alunos em relação a Round 6 e decidiu abordar o assunto em aula. “Eles falavam da série como se fosse legal e natural que as pessoas se matassem por dinheiro. A sensação que tive foi que eles acharam bacana a crueldade dos episódios. Fiquei mais espantada depois que eu mesma vi a série. Senti a necessidad­e de falar com eles sobre o lado negativo, e da importânci­a de assistir a programas com classifica­ção indicativa para a idade”, diz a professora. Andréa gostou da série. “Achei uma crítica interessan­te ao capitalism­o, mas, para crianças de 11 anos, ela é totalmente inviável devido ao grau de crueldade física e psicológic­a”, ressalta.

ANTICAPITA­LISMO. O fenômeno Round 6, para além do fascínio das crianças, deriva do que muitos consideram uma crítica ao capitalism­o. E, apesar de as críticas serem à realidade da sociedade coreana, as desigualda­des são mais ou menos parecidas por todo o planeta – e foram aumentadas por conta da pandemia. No Brasil, o Índice de Gini, usado para medir a desigualda­de de renda, estava em 0,642 no primeiro trimestre de 2020. No fim do ano, estava em 0,669 e no trimestre inicial de 2021 atingiu 0,674 ( o ponto mais alto da série histórica do índice, que oscila entre 0 e 1, no Brasil ). “A tendência crescente de priorizar os benefícios sobre o bem-estar do indivíduo é um fenômeno que vemos nas sociedades capitalist­as de todo mundo”, disse à AFP Sharon Yoon, professor de Estudos Coreanos na Universida­de Notre-dame.

“Eu quis escrever uma estória que fosse uma alegoria ou fábula sobre a sociedade capitalist­a moderna, algo que retratasse uma competição extrema, como a extrema competitiv­idade da vida”, disse o diretor da série, Hwang Dong-hyuk, à revista americana Variety.

Discussões sobre o capitalism­o à parte, Luciana de Moraes

Cunha Correa toma todo cuidado para proteger a filha de 11 anos que, claro, está louca para ver a série. Ao receber a negativa, a menina retrucou: “Ah, mãe, minhas amigas assistiram. Na minha sala, só eu que ainda não vi”.

O interesse da menina Manoela, aparenteme­nte, não tem a ver com a série em si, mas com a influência que os serviços de streaming e as redes sociais têm sobre todos. Adultos ou crianças. “Eu fiquei interessad­a porque estava todo mundo falando nisso, estava no ‘top 1’ das séries mais vistas no Brasil. E também porque vi diversos memes no Instagram da ‘batatinha frita 1, 2, 3’, daí fiquei curiosa.”

O sucesso de Round 6 éo mais recente capítulo da escalada do audiovisua­l sul-coreano mundo. Se a série da Netflix é o seu capítulo mais popular, o mais importante foi Parasita, que venceu o Oscar de melhor filme, diretor, filme estrangeir­o, roteiro original, direção de arte e montagem. Todos no ano passado. O principal ponto de intersecçã­o entre as duas produções é a desigualda­de social. Se os jogos mortais de Round 6 são vividos por desemprega­dos em busca de um prêmio milionário, em Parasita uma família mostra as amplas desigualda­des da sociedade sul-coreana.

“Todos esses prêmios contemplam uma obra que, desde a vitória com a Palma de Ouro em Cannes, no ano passado, tem sido tema de admiração e polêmica. Realizado com precisão absoluta – a ponto de a Academia ter ignorado o portentoso plano-sequência, mesmo que não seja um só, de 1917 –, o filme também segue uma tendência expressa no brasileiro

Bacurau, no francês Les Misérables e no norte-americano Coringa – a revolta dos excluídos face às desigualda­des do mundo”, escreveu, no Estadão, no ano passado, o crítico de cinema Luiz Carlos Merten.

Com tanta polêmica envolvida, Round 6 já é o maior lançamento de série original da Netflix. Até meados de outubro, foram 111 milhões de acessos em todo o mundo, segundo a plataforma. O valor da série é estimado em US$ 900 milhões, o equivalent­e a quase R$ 5 bilhões, na cotação atual, de acordo com a Bloomberg News, que cita números de um documento interno da companhia.

De qualquer forma, os lucros do mundo real são incongruen­tes com as misérias vividas pelos personagen­s da série, que passam por provas de sobrevivên­cia em busca de dinheiro para pagar suas dívidas. São 456 pessoas desemprega­das, em desespero financeiro, para ganhar um prêmio de US$ 38 milhões.

Será que a polêmica voltará para uma nova temporada? •

Pais e escola ‘A gente tem de repactuar o olhar que família e escola têm juntas’, diz diretora do colégio Dante Alighieri

“É preciso lembrar que cada criança é uma e, na prática, as reações a conteúdos de violência também serão singulares” Tauane Ghem Psicóloga

“Eu quis escrever uma estória que fosse uma alegoria ou fábula sobre a sociedade capitalist­a moderna” Hwang Dong-hyuk Roteirista

 ?? ?? A estudante Manoela, de 11 anos, com a mãe, Luciana: ‘Na minha sala, só eu que ainda não vi’
A estudante Manoela, de 11 anos, com a mãe, Luciana: ‘Na minha sala, só eu que ainda não vi’
 ?? WAGNER SIDNEY SILVA/ESTADÃO ??
WAGNER SIDNEY SILVA/ESTADÃO

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil